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DOMINGOS FERNANDES. Coordenador do projeto MAIA (Monitorização, Acompanhamento e Investigação em Avaliação Pedagógica), no âmbito da Autonomia e Flexibilidade Curricular (AFC), é professor catedrático na Escola de Sociologia e Políticas Públicas do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa.
Na transição atípica entre dois anos letivos que vão ficar marcados pelas circunstâncias de uma crise sanitária ainda sem fim à vista, a PÁGINA convidou alguns colaboradores – especialistas em diversas áreas das ciências da educação – a refletirem sobre as consequências destes tempos, e dos modos como os vivemos, no presente e no futuro do sistema de ensino, das escolas e das comunidades que as habitam. Para esta edição, questionámos, essencialmente, sobre aspetos ligados à avaliação e à relação pedagógica; na próxima, abordaremos o desenvolvimento curricular e a inclusividade do sistema e da organização escolares.
O que é o MAIA? Que objetivo(s)? Num certo sentido, o projeto MAIA materializa uma diversidade de políticas públicas orientadas para melhorar as práticas pedagógicas das escolas e dos seus docentes e, consequentemente, as aprendizagens de todos os alunos. Por isso, ainda que seja dada uma particular atenção à avaliação pedagógica, nunca se deixou de referir que esse esforço seria desenvolvido tendo em conta quatro ideias essenciais: i) Uma Educação para Aprender a Pensar; ii) Uma Escola com Políticas Centradas nas Aprendizagens; iii) Um Currículo que se Constrói e Reconstrói, que se Vive e que é Vida; iv) Aprendizagem e Ensino como Processos Indissociáveis da Avaliação. O projeto foi pensado tendo naturalmente em conta a melhoria das práticas de avaliação pedagógica no sistema escolar, mas, para isso, foi necessário formular uma ampla diversidade de objetivos decorrentes do pensamento, das ideias que estão na origem da sua conceção e que atrás referi. Dou três exemplos. 1. Na dimensão da formação dos professores desenvolveram-se estratégias que facilitassem a criação de redes informais de comunicação entre as pessoas e o trabalho colaborativo, tendo em vista a criação de reais comunidades de aprendizagem, muito na perspetiva dos sistemas de atividade proposta por Yrjö Engeström: utilização e discussão de artefactos e/ou materiais mediadores com conteúdos de real e comum interesse, objeto de estudo comum tendo em vista um certo resultado, estabelecimento de regras de funcionamento. Um objetivo importante da formação está consubstanciado na ideia de que o trabalho tinha de ser desenvolvido com os professores e não para os professores. 2. Na dimensão da avaliação como domínio do conhecimento, foram definidos objetivos que se consideraram de grande alcance, uma vez que não parece ser possível produzir quaisquer mudanças substantivas nas conceções dominantes de avaliação – essencialmente baseadas no pensamento dos finais do século XIX e dos princípios do século XX – sem que se estudem, discutam e compreendam os fundamentos ontológicos, epistemológicos e metodológicos da avaliação como domínio do conhecimento. Só desse modo se pode compreender a natureza da avaliação e retirar daí as respetivas consequências para as práticas nas salas de aula. 3. Consequentemente, na dimensão da avaliação pedagógica e das suas práticas, os objetivos foram muito centrados na clarificação conceitual, nomeadamente no que se refere a dois conceitos estruturantes – Avaliação Formativa (avaliação para as aprendizagens) e Avaliação Sumativa (avaliação das aprendizagens) – acerca dos quais existe ainda uma comprovada dificuldade por parte de um número significativo de profissionais. Este facto é de grande relevância pois a referida clarificação deverá permitir distinguir entre classificação e avaliação e, desse modo, criar condições para passarmos de uma conceção de avaliação como medida (que é ainda predominante) para uma conceção de avaliação como processo pedagógico destinado a apoiar e a melhorar o ensino e as aprendizagens. Esta é mesmo a questão central em torno da qual todos os objetivos do projeto acabam por convergir. Por isso, foi dada particular ênfase à necessidade de estudar e discutir os materiais produzidos e sugeridos, ou outros de teor semelhante. Creio mesmo que sem uma dedicação ao estudo e à reflexão não será possível transformar e melhorar as realidades escolares de forma sustentável. Afinal, estudar, pensar e refletir fazem parte da natureza da nossa profissão.
Quando é que o projeto teve início? Que balanço é possível neste momento? O projeto iniciou-se em finais de setembro de 2019. Na verdade, foi o seu primeiro momento, com a formação de cerca de 160 formadores e representantes para a autonomia e flexibilidade curricular (AFC) dos centros de formação de associações de escolas (CFAE). Será feito um balanço através de um relatório relativo à investigação que se desenvolveu paralelamente e que deverá estar concluído dentro de algumas semanas. Têm sido feitos balanços de natureza informal e impressionista por parte de um número de pessoas que estiveram envolvidas no projeto (formandos e formadores, representantes AFC, diretores de CFAE e de agrupamentos) que são francamente encorajadores.
O modelo de formação que tem vindo a ser a levado a cabo no âmbito do projeto tem impacto real ao nível das escolas? E dos professores/alunos? E da melhoria das aprendizagens? Em rigor, só um estudo do tipo follow up poderá responder cabalmente a estas questões. O relatório de investigação que está a ser elaborado dará, com certeza, e num certo sentido, um contributo para responder à primeira questão. No entanto, neste momento, é possível referir o seguinte: os docentes (formadores e formandos) que participaram nas oficinas de formação que funcionaram nos 88 CFAE envolvidos no Projeto MAIA conceberam e elaboraram projetos de intervenção apontando no sentido de melhorar as práticas pedagógicas de ensino e de avaliação; tanto quanto me tem sido possível saber, através de fontes escolares e dos CFAE, um pouco por todo o país, gerou-se uma dinâmica no sentido de pôr em prática os referidos projetos. Pessoalmente, conheço um número de agrupamentos/escolas não agrupadas em que os projetos de intervenção realizados pelos seus docentes que integraram as oficinas de formação foram ou vão ser discutidos nos conselhos pedagógicos, tendo em vista a sua concretização. Se assim for, talvez estejamos a fazer alguns progressos em termos dos impactos nas escolas e nas práticas dos professores, dada a natureza das conceções e perspetivas pedagógicas subjacentes nos referidos projetos. Mas, como digo, isso carece de ser investigado dentro de algum tempo. Relativamente à terceira parte da questão, o que posso dizer é que a investigação realizada nos últimos 30 anos mostra, sem quaisquer dúvidas, que as práticas de ensino e de avaliação pedagógica, tal como preconizadas e assertivamente sublinhadas no Projeto MAIA, melhoram de forma notável as aprendizagens de todos os alunos. E muito particularmente daqueles que normalmente são designados como alunos com mais dificuldades. São estes quem, efetivamente, mais pode beneficiar da avaliação pedagógica.
O que é avaliar e o que se espera, hoje, de quem avalia? Avaliar é um processo de natureza pedagógica cujo mais fundamental propósito é recolher informação que nos permita distribuir feedback de qualidade aos alunos. Isto é, feedback que, em cada momento, permita que os alunos saibam o que têm de aprender, em que situação se encontram e os esforços que têm de fazer para ultrapassar eventuais dificuldades e lhes permitam aprender. Eu diria que o que se espera de quem avalia, ou de quem tem de avaliar, é que, antes do mais, distinga muito bem entre avaliação e classificação, que não são de todo a mesma coisa. Depois, que defina princípios pedagógicos que lhe permitam estabelecer uma política de avaliação, cujo propósito é apoiar o ensino e as aprendizagens, e uma política de classificação (tipicamente um algoritmo) inteligente e consistente com os princípios definidos. Acima de tudo, quem avalia tem de se assumir como um pedagogo no sentido mais profundo do termo. Um homem, uma mulher, cosmopolita que contribui ativa e conscientemente para que os alunos aprendam a pensar para se tornarem cidadãos livres, informados, conhecedores, competentes e felizes.
Nas escolas, começa a falar-se desse ‘feedback’ na avaliação. É já sintoma de mudança? Que importância lhe atribui? Creio que não podemos dizer que corresponde já a uma real mudança. Mas, como diz, pode ser um sintoma... Acredito que há uma certa retórica incorporada no discurso de muitos profissionais e que parece estar a alimentar um movimento no sentido de uma cultura de avaliação pedagógica. O feedback é uma peça central dessa cultura e, com certeza, é positivo que se vá reconhecendo a sua importância, sobretudo, através das práticas de avaliação nas salas de aula. Eu diria que sem feedback, pura e simplesmente, não há avaliação pedagógica, cujo propósito é apoiar e orientar as aprendizagens. O feedback é a razão funda de ser da avaliação para aprender e a sua qualidade está essencialmente relacionada com as três funções que lhe devem ser atribuídas, que já referi.
A crise sanitária e o ensino a distância tornaram mais urgente o desenvolvimento de um novo paradigma de avaliação ou vieram dificultar a sua implementação? O que tem tornado urgente o desenvolvimento de práticas de avaliação pedagógica são imperativos de natureza ética, política, social e pedagógica. O conhecimento científico de que dispomos há algumas décadas já demonstrou que a avaliação para aprender, a avaliação como processo pedagógico, em que a interação social, o feedback, a diversificação da recolha de informação e a participação dos alunos são caraterísticas, melhora de forma dramática as aprendizagens de todos os alunos. E isto significa que avaliação e classificação não são sinónimos. Consequentemente, teremos uma pedagogia orientada para as aprendizagens e para a inclusão dos alunos. Dito isto, a crise sanitária é uma calamidade que, na minha perspetiva, não alterou o essencial das nossas preocupações relativamente ao desenvolvimento dos processos de educação e de formação. Elas mantêm-se e nós temos de continuar esse duro e difícil combate social, pedagógico e, também, político. Não sou dos que acreditam que, após a pandemia, tudo vai mudar como que por magia... É preciso estudar, pensar e refletir de forma sistemática, para se poder agir, transformando a escola do século XIX, que sob muitos pontos de vista ainda é a nossa. Admito, obviamente, que as circunstâncias a que a pandemia nos obrigou, podem ter contribuído para que mais professores, mais escolas, venham a trabalhar com recurso a mais tecnologias digitais. Mas sem uma boa fundamentação pedagógica e sem pensamento autónomo, crítico e criativo, tudo não passará de uma mera ilusão. A questão é filosófica, pedagógica, ética, política e social. Não é, realmente, tecnológica.
Avaliação interna e externa... O que avalia cada uma? Como se conjugam/complementam? Esta é uma questão muito pertinente e que continua a ser objeto de reflexão por parte de uma diversidade de intervenientes, incluindo os académicos. A avaliação interna é da integral responsabilidade dos docentes e das escolas e, em geral, avalia um largo espetro de aprendizagens e de competências, muitas das quais não podem ser objeto de avaliação através de testes, provas aferidas ou exames. Na verdade, como é sabido, nem tudo se pode medir. O propósito mais fundamental da avaliação interna é contribuir para regular e autorregular as aprendizagens. A avaliação externa, sob a forma de exames ou provas aferidas, é da responsabilidade de uma entidade externa às escolas – Instituto de Avaliação Educacional (IAVE) – e faz, normalmente, um ponto de situação acerca do que os alunos sabem e são capazes de fazer. Os propósitos das avaliações externas variam de acordo com a sua natureza. 1. No caso das provas aferidas, sistema relativamente recente e que se pode considerar inovador, além da gestão e monitorização do sistema escolar, há propósitos relacionados com o desempenho dos alunos, cuja informação lhes é enviada, assim como às respetivas escolas. Neste sentido, talvez estejamos perante uma nova geração de avaliações externas, que poderão tender a articular-se melhor com as avaliações internas. O que me parece é que a apropriação, por parte das escolas, dos resultados dos alunos ainda tem de fazer o seu caminho. Mas seria mau, quanto a mim, que não se cuidasse bem das potencialidades pedagógicas reais desta avaliação aferida, que sendo, por definição, uma avaliação de natureza sumativa, tem propósitos claramente formativos. 2. No caso dos exames, a articulação parece ser mais complexa, uma vez que o seu propósito é, no essencial, selecionar os alunos para o ingresso no Ensino Superior. Os efeitos dos exames nas práticas pedagógicas dos professores e nas aprendizagens e modos de estudo dos alunos estão razoavelmente bem estudados a nível internacional. Para utilizar uma ideia resultante das investigações que desenvolveu, George Madaus dizia que as avaliações externas do tipo dos exames geram mais prejuízos do que benefícios e que o desafio dos estudiosos destas matérias seria o de trabalhar para que os benefícios superassem os prejuízos. A verdade é que os chamados efeitos de backwash ou washback dos exames – tais como o empobrecimento ou estreitamento do currículo; a utilização de estratégias que afastam os alunos que dão poucas garantias de obterem bons resultados; a tendência dos docentes para emularem os exames nas suas práticas de avaliação e ensinarem apenas o que é mais passível de sair nas provas – continuam a marcar seriamente todo o processo dos exames. Neste sentido, os benefícios referidos – efeito moderador, aproximação entre currículo proposto e currículo ensinado, ensino de matérias reconhecidamente relevantes – acabam por não superar os prejuízos. Julgo que facilmente se reconhece a necessidade de evoluir para outro sistema de acesso ao Ensino Superior, porque este, com 24 anos, já não serve bem o Ensino Superior nem o bom funcionamento pedagógico das escolas.
Há alguns anos, referia três razões que, só por elas, justificavam ou aconselhavam mudanças na avaliação: aprendizagens, currículo e democracia. Mantém esses pressupostos de mudança? Julgo que foi há cerca de 15 anos. Mantenho precisamente a mesma ideia, pois uma cultura de avaliação pedagógica tem um papel relevante nas aprendizagens de todos os alunos, um lugar privilegiado no desenvolvimento do currículo nas salas de aula e um papel inestimável na real democratização do sistema escolar, tornando-o mais inclusivo.
Pode dizer-se que a avaliação é a pedra-de-toque do processo de ensino/aprendizagem? Ou devemos falar, antes, de processo de ensino/aprendizagem/avaliação? Philippe Perrenoud disse um dia que mudar a avaliação implica, muito provavelmente, a mudança da própria escola. Não irei tão longe, pois poderíamos, eventualmente, dizer o mesmo relativamente aos processos de ensino. Mas julgo entender o que nos disse este eminente pensador, sociólogo e filósofo da educação, que tanto marcou a investigação um pouco por todo o mundo. Isto, a propósito de a avaliação poder ser a pedra-de-toque do processo ensino/aprendizagem como sugere na pergunta. Em termos teóricos, a tendência poderá ser uma metateoria que, no fundo, venha a emergir das teorias da aprendizagem, do ensino e da avaliação. De certo modo, pode começar a não fazer sentido termos as três teorias separadas, sobretudo se pensarmos nas práticas pedagógicas em que, claramente, os processos de ensino, aprendizagem e avaliação tantas vezes se confundem e sobrepõem. Daí a necessidade de uma teoria que nos ajude a resolver esta situação algo nebulosa.
Que desafios próximos/imediatos se colocam à avaliação? O principal desafio é considerar a avaliação como um processo pedagógico que se destina a recolher informação acerca do que os alunos sabem e são capazes de fazer para lhes distribuir feedback que os ajude a aprender mais e melhor, com mais profundidade. Associado a este, o desafio de distinguir claramente entre avaliação e classificação, pois é esta distinção que nos permitirá afastar da ideia de avaliação como medida e aproximar da ideia de avaliação como processo pedagógico para aprender. Finalmente, a avaliação realizada nas salas de aula – sendo pedagogia e não psicometria, sendo um meio para refletir e não para medir – não pode deixar de dar um contributo relevante para que a educação seja, cada vez mais, aprender a pensar.
AS ESCOLAS TÊM MESMO DE SE REINVENTAR Sejamos claros: a Escola, tal como hoje existe, na maioria dos casos, está esgotada; a sua lógica estruturante vem do século XIX e nós estamos no século XXI. O que me parece é que nós temos os sistemas escolares numa espécie de cuidados paliativos, em que vamos experimentando/tentando algumas soluções para ver se aguentamos as coisas, para, eventualmente, ganharmos algum tempo. Na verdade, não estamos a ir ao fundo das questões, dos problemas, quer ao nível da organização e funcionamento das escolas, quer dos modos através dos quais crianças e jovens podem aprender. Há muitos exemplos que podem ajudar-nos a situar nesta questão. A incompreensível desvalorização do trabalho de grupo; a inexistência de reais estruturas, nas escolas, em que se resolvam e/ou discutam problemas de natureza diversa, sob os pontos de vista social, tecnológico e técnico e científico; a predominância de um currículo essencialmente disciplinar, na lógica de um professor/uma disciplina/uma aula. Julgo que teremos de caminhar para um sistema em que grupos de alunos, apoiados por grupos de professores, trabalham em projetos que obriguem à mobilização, integração e utilização de uma diversidade de conhecimentos: gestão e processamento do lixo numa aldeia, vila ou cidade; aspetos sociais, técnicos, científicos e tecnológicos relacionados com o funcionamento de uma fábrica; projeto artístico para uma zona da cidade ou do bairro; estudo das relações entre a prática desportiva e o bem estar social; produção de textos acerca de uma diversidade de temas científicos, artísticos, culturais, sociais, ... A atual lógica de funcionamento já não responde cabalmente às exigências da sociedade e às necessidades das crianças e dos jovens. Ainda que mais ou menos pontualmente, este tipo de abordagens, e outras de semelhante natureza, são já realidade em muitos sistemas escolares. E terá de ser cada vez mais assim, sob pena de a Escola se tornar ainda mais obsoleta e até ingerível. O currículo é claramente excessivo, quer quanto ao número de disciplinas (nos primeiros anos do Ensino Básico chega a ser escandaloso), quer quanto à carga de conteúdos. Tudo parece ser importante e relevante; não se distingue o essencial do acessório. E aposta-se, principalmente, na relação verbal com o conhecimento, em vez de uma relação em que é necessário pôr as mãos na massa. Além disso, pouco mais se exige do que a reprodução do que se ouviu ou do que se leu – aprender a pensar é, ainda, privilégio de poucos. Temos um currículo que está dependente da abordagem ultra disciplinar das universidades, que, como se sabe, acabam por ter uma forte influência sobre o que acontece a montante... E esta é, também, uma razão que justifica a dificuldade em resolver o problema de transformação e inovação das escolas, que as sociedades têm entre mãos. Para finalizar, creio que não será a atual pandemia que vai obrigar as escolas a reinventarem-se e a mudarem no sentido esboçado. Serão as ideias, as políticas públicas e o desenvolvimento cultural e civilizacional das sociedades que o poderão fazer.
António Baldaia (entrevista)
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