Laura Sagnier é licenciada em Ciências Económicas e Empresariais pela Universidade de Barcelona, conta 30 anos de experiência em market intelligence e tem dirigido vários projetos em diversos países. À PÁGINA comentou os resultados do estudo “As Mulheres em Portugal, hoje: quem são, o que pensam e como se sentem”, o que mais a surpreendeu e o papel da educação e do feminismo.
As mulheres estão, em geral, cansadas e com pouco tempo para elas próprias. No mercado de trabalho há 71% de mulheres ativas e quase todas consideram que as mulheres têm dificuldades em progredir hierarquicamente nas empresas, que preferem promover um homem. Não bastasse o trabalho pago, há ainda o não pago: as lides da casa e o cuidado e educação dos filhos. Estas são algumas ideias do estudo “As Mulheres em Portugal, hoje: quem são, o que pensam e como se sentem”, coordenado por Laura Sagnier e Alex Morell e apresentado, em fevereiro, pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. O desequilíbrio na divisão das tarefas domésticas entre mulheres e homens é grande – as mulheres suportam mais do triplo do trabalho do que o companheiro, desempenhando, em média, 74% das tarefas domésticas – e estima-se que só daqui a cinco ou seis gerações é que haverá igualdade nesta matéria. Nem todas as mulheres procuram o mesmo tipo de vida, pelo que é necessário respeitar as suas opções, especialmente as relacionadas com a maternidade. “Que nenhuma mulher se sinta obrigada a ter filhos”, referiu Laura Sagnier à PÁGINA. É que, de acordo com o estudo, nem todas querem ser mães – aliás, para 18% das inquiridas que tiveram filhos, a maternidade não foi o que esperavam. O estudo, baseado numa amostra de 2.428 mulheres entre os 18 e os 64 anos, representa uma faixa de 2,7 milhões de mulheres portuguesas em temáticas tão diversas como os hábitos e as atitudes perante a vida, a relação com o/a parceiro/a, os filhos, o trabalho pago, o assédio moral e sexual, a violência doméstica, entre muitas outras.
Quais as principais conclusões do estudo e o que mais a surpreendeu? Entre as principais conclusões eu destacaria as seguintes: em primeiro lugar, o enorme desequilíbrio que se produz entre as cargas familiares que suportam os dois membros do casal – o trabalho não pago feito em casa continua a ser um assunto de mulheres; em segundo lugar, a situação de esgotamento total que estão a viver muitas mulheres em Portugal e os custos sociais que isto supõe para o país; em terceiro lugar, nem todas as mulheres são iguais e nem todas estão à procura do mesmo tipo de vida, pelo que é fundamental deixar que cada mulher seja livre para viver sozinha ou para partilhar a sua vida com outra pessoa... Sobretudo, que nenhuma mulher se sinta obrigada a ter filhos. O estudo permite também concluir que há várias fases no ciclo de vida das mulheres e que a fase em que vão ter mais tempo para elas próprias e para pensar o que, de verdade, lhes convém mais, é o período entre os 18 e os 27 anos. Já no que diz respeitos às surpresas, houve várias. Uma delas foi que, apesar da desequilibrada repartição das cargas familiares entre os membros do casal, a grande maioria das mulheres não traduz isto em infelicidade perante o parceiro; é como se, desde o início, as mulheres estivessem formatadas para aceitá-la. Outra foi que, com os desequilíbrios que enfrentam e o pouco tempo de que a maioria dispõe para si própria, a faceta da vida com que mais mulheres em Portugal se sentem infelizes é o seu aspeto físico. E a principal surpresa, sem dúvida, foi que a maternidade não trazfelicidade a todas as mulheres e, mais do que isso, sentir-se feliz com os filhos não garante que a mulher se sinta feliz com a vida.
Referiu que o nível de esgotamento das mulheres é grande. Tendo em conta o estudo, quais são as causas? Efetivamente, o estudo mostra que muitas mulheres se sentem esgotadas porque estão a realizar uma dupla jornada: no trabalho remunerado e em casa. Dado que o dia tem 24 horas, e destinamos sete ou oito a dormir, esta dupla jornada traduz-se em pouquíssimo tempo para elas. Na fase mais crítica, enquanto os filhos são pequenos, as mulheres contam com apenas 54 minutos por dia para si próprias. E acontece que os filhos não vão de férias, pelo que este pouco tempo de descompressão se acumula, dia após dia, durante 365 dias por ano, ao longo de todos os anos em que o filho ou os filhos são pequenos. Mais, este cansaço não é só físico, como também mental: é o que as feministas chamam de mental load. E a esta situação junta-se o inevitável desgaste emocional que provoca ver o parceiro tão desligado das tarefas da casa e do cuidado e educação dos filhos.
A sobrecarga a que estão sujeitas reflete-se no seu bem-estar físico e mental das mulheres. É também por isso importante o tempo que tiram para si. Há hoje mais consciência disso? Sim, acredito que agora há mais consciência. Mas, à vista dos resultados, está claro que ainda há muitíssimo por fazer. A minha opinião é que é fundamental que as mulheres mudem o ‘chip’. Temos de deixar de achar que fazendo tudo estamos a ser melhores companheiras, melhores mães e melhores filhas ou netas. Temos de aprender a dizer não antes de cair doentes ou começar a consumir medicamentos. Sem dúvida, um bom ponto de partida é conseguir a igualdade em casa. Eu vejo a situação atual como uma “pescadilla que se muerde la cola” [pescadinha de rabo na boca]. Se nós, mulheres, estamos esgotadas, é impossível conseguirmos, no emprego, um nível de rendimento igual ao dos nossos companheiros do sexo masculino, o que obviamente se traduz num ‘gap’, não só em dinheiro como também em poder. Se conseguirmos que o nosso parceiro se corresponsabilize nas tarefas domésticas, nós ganharíamos, no mínimo, uma hora por dia para recarregar baterias.
A partilha das tarefas domésticas é uma questão que sempre se levanta. Com as novas gerações, o cenário não deveria ser diferente? E é fundamental que se levante, porque ainda há um largo caminho por andar. O estudo permite quantificar que, no que respeita a tarefas domésticas e ao cuidado e educação dos filhos, as mulheres estão a realizar mais do triplo do que os seus companheiros. E o desequilíbrio entre os dois membros do casal piora ainda mais se tivermos em conta outra componente das responsabilidades familiares: as despesas da família. Nas novas gerações, o cenário é melhor, efetivamente. Contudo, o estudo conclui que – ao ritmo a que evoluiu, na última geração, a contribuição dos homens nas tarefas domésticas (de 22% para 26%) – para se igualarem as posições nos casais em que a mulher está ativa no mercado de trabalho, serão necessárias entre cinco a seis gerações. Isto é, se não se conseguir acelerar a mudança, faltam entre 125 e 150 anos para se alcançar a igualdade entre homens e mulheres em casa...
E o que pesa mais: a vida profissional ou a vida familiar? Depende muito da realidade de cada mulher, isto é, do tipo de trabalho que tem, se vive em casa dos pais ou já se emancipou, se tem ou não filhos, e da ajuda de que se dispõe em casa. Simplificando muito: enquanto que para a mulher que não tem filhos o que mais pesa é a vida profissional (o trabalho pago requer entre sete e oito horas e as tarefas da casa entre duas e três horas), com a chegada dos filhos a equação altera-se e a vida familiar passa a liderar a sobrecarga, sobretudo com filhos pequenos, já que as horas dedicadas às tarefas da família duplicam.
Tendo em conta, por exemplo, as diferenças salariais entre homens e mulheres, a desigualdade de oportunidades de trabalho, os números da violência doméstica, ser mulher, por si só, pode ser uma condição discriminatória? Infelizmente, acho que sim. Salvo contadíssimas ocasiões, de umas poucas privilegiadas, ser mulher é discriminatório. E, apesar de tudo o que temos melhorado face às nossas avós, ainda há muito trabalho a ser feito. E ninguém pode pensar que seremos capazes de fazer isto sozinhas. Vamos precisar não só da implicação da outra metade da população, os homens, como também de todos os agentes sociais. Não se trata de uma guerra de sexos, mas de uma questão de justiça social.
Qual é o papel da educação? Eu estou convencida de que a educação é a melhor, se não a única via para alcançarmos uma sociedade mais igualitária e, portanto, mais justa para com as mulheres. E quando me refiro à educação, não estou a considerar só a escolaridade, que o estudo confirmou ser determinante no bem-estar das mulheres, mas também os outros dois pilares da educação: o que vivemos diariamente no âmbito familiar e a cultura em que estamos imersos; isto e aquilo que nos transmitem os filmes, os livros, os anúncios, as revistas...
E qual a importância do feminismo? Ou dos feminismos? Temos muitíssimo que agradecer às primeiras feministas. Sem a sua luta, hoje não estaríamos a falar destas questões. É pena que ainda haja pessoas, inclusive mulheres, que ao escutar a palavra feminismo fiquem horrorizadas. Sem dúvida, a razão é que muitas delas não foram sequer ao dicionário à procura do seu significado: movimento ideológico que preconiza a ampliação legal dos direitos civis e políticos da mulher ou a igualdade dos direitos dela aos do homem. Caso contrário, haveria alguma mulher que se declarasse não feminista? Haveria alguma que não quisesse ter os mesmos direitos que os seus companheiros do sexo contrário?
Coordenou um estudo semelhante em Espanha. Quais foram as principais diferenças e os principais pontos de contacto? Resumindo, podemos dizer que na Península Ibérica a situação das mulheres é muito parecida. A principal similitude está no facto de, em ambos países, estarmos longe de atingir a igualdade entre homens e mulheres no que respeita à partilha das tarefas relativas à casa e ao cuidado e educação dos filhos. Contudo, em Espanha a situação é um pouco mais favorável, porque, ao ritmo de evolução acontecido até hoje, estima-se que faltem três gerações face às cinco ou seis das que falávamos há pouco que faltam em Portugal. No que se refere a diferenças, no meu entender, as principais são duas: a primeira é que em Portugal há mais mulheres ativas no mercado de trabalho (71% face a 56%), com efeito negativo (mais mulheres esgotadas pelas dificuldades em conciliarem as duas vidas) e com efeito positivo (mais mulheres que não dependem economicamente do parceiro); outra diferença é que em Portugal a maternidade é uma questão mais central na vida das mulheres e, portanto, há mais mulheres que se sentem realizadas com a sua maternidade. De facto, as que se arrependem de terem sido mães e, se pudessem voltar atrás, não o teriam sido são 5% em Portugal e 9% em Espanha.
Enquanto mulher, é mais importante ser uma profissional de sucesso ou emocionalmente feliz? A minha opinião é que, sejas mulher ou homem, o mais importante é construir uma vida que te permita sentires-te emocionalmente feliz. Nesta linha, o estudo diz que a faceta que mais afeta a felicidade das mulheres é a pessoa com quem partilham a vida. Ter um companheiro com quem nos sentimos infelizes influi muito mais negativamente na nossa felicidade do que não ter companheiro. A investigação confirma que “mais vale só do que mal acompanhada”. No extremo oposto, ter um companheiro ou uma companheira com quem nos sentimos felizes é quase sinónimo de ser uma mulher feliz. Contudo, nenhuma mulher deve esquecer que só com independência económica terá plena liberdade de manobra se a escolha do parceiro tiver sido errada; a independência económica que deriva do sucesso profissional é o único salva-vidas possível.
Maria João Leite (entrevista)
©DR
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