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A utopia é uma necessidade

Doutor em Filosofia e Ciências da Educação, José Antonio Caride é catedrático de Pedagogia Social na Universidade de Santiago de Compostela e coordenador da área das Ciências da Educação da Agência Estatal de Investigação (Espanha). Diretor do grupo de investigação ‘Pedagogia Social e Educação Ambiental’ da universidade compostelana, é também coordenador e investigador principal da Rede de Grupos de Investigação em Educação e Formação para a Cidadania e a Sociedade do Conhecimento. Educação ambiental, desenvolvimento humano e sustentabilidade; educação social e políticas culturais; tempos educativos e sociais; políticas culturais e socioeducativas na Administração Pública; pedagogia social e direitos cívicos – estas são algumas das principais áreas de investigação a que se dedica.
Colaborador permanente da PÁGINA, é autor de mais de 450 publicações em livros e revistas especializadas em Ciências Sociais e da Educação e integra mais de 30 conselhos ou comités científicos e editoriais, assim como diversas comissões de avaliação e acreditação de âmbito nacional e internacional (incluindo Portugal). Professor visitante de várias universidades europeias, africanas e latinoamericanas, foi presidente da Sociedade Iberoamericana de Pedagogia Social (2002-2013). Em 2004, foi distinguido com a Ordem ao Mérito Institucional do Conselho Mundial da Educação.

O sistema educativo português está numa fase de mudança, que passa pela projeção de um perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatória, pela definição de um conjunto de aprendizagens essenciais, pela adoção de uma estratégia nacional de educação, pela progressiva generalização de um projeto de autonomia e flexibilidade curricular, pela entrada em vigor de um regime jurídico de educação inclusiva... Curiosamente, por estes dias, assinala-se o 25º aniversário da Declaração de Salamanca, que é, justamente, uma referência para a educação inclusiva.
A Declaração de Salamanca começa, fundamentalmente, por ser uma mostra de inquietude e preocupação, onde se articula a vontade de exprimir por palavras um novo olhar sobre a diversidade na educação. Palavras que não são neutrais, que significam uma tomada de posição relativamente a modos de diagnosticar, de dizer e de fazer a educ escola ação com pessoas que, pelas suas circunstâncias pessoais, sociais, culturais, tenham dificuldade em acompanhar os ritmos da escola, em geral.
Portanto, começa por ser uma mudança de visão, uma mudança nas palavras. De facto, a palavra ‘inclusão’ pretende ir muito mais além do que a ‘integração’. E o que representa não é tanto uma mudança nos modos de ser e fazer escola, mas de ser e fazer educação. E de o fazer não como projeto que tem de atender às circunstâncias e particularidades de cada aluno ou aluna, de cada professor ou professora, mas, sobretudo, de cada menino e menina. Por outro lado, trata-se de afirmar, de uma vez por todas, que podemos educar cada pessoa para o máximo das suas capacidades, das suas necessidades e diversidades. Daí que tenhamos de celebrar a declaração, passando-a das palavras aos feitos, e tudo o que significa vincular a inclusão à educação e poder falar de uma escola inclusiva, mas também de uma educação que o seja. É um modo de repensar a educação e de valorizar tudo o que a educação significa de viagem ao interior de cada pessoa, mas também de viagem à sociedade e à realidade na qual a pessoa está inserida.

E como operar o princípio da inclusão nos diferentes domínios da educação, sabendo que alguns são mesmo excludentes? Trabalhando em rede...
Claro. Tem de ser uma educação em comum e em redes. É uma metáfora muito interessante aquela que nos lembra os vínculos com o conjunto de pessoas com quem vivemos, e fundamentalmente convivemos, que é uma rede já não só de proximidades. É uma rede global, que nos situa no mundo. O pensamento global para uma atuação local deve ser também a possibilidade de um pensamento local para uma atuação global; não são duas circunstâncias que se contradizem, mas se complementam. Daí que devamos recuperar tudo aquilo que a educação perdeu de uma visão integral, holística, inter-relacional. Muito do que pretende a Educação Social é a reivindicação desse sentido do coletivo, do comum, do social, que nos lembra que a educação se faz em sociedade e para a sociedade, mas também com a sociedade. Daí que o protagonismo das famílias, das comunidades, dos movimentos cívicos, dos meios de comunicação social – de tudo o que dizemos ‘rede’ – seja em si mesmo educativo.

Por isso considera fundamental o envolvimento comunitário na educação?
Claro. Eu sempre digo que a terminologia que vem dos anos 70, diferenciando educação formal de educação não formal e de educação informal, de certo modo, obscurece e diferencia o que, na realidade, está muito mais integrado e que não corresponde a essas expressões. Quando muitas vezes dizemos educação não formal deveríamos dizer educação familiar, comunitária, cidadã, cívica, porque todas as educações, de um jeito ou de outro, são formais. Portanto, há que recuperar o sentido da educação como projeto e trajeto comunitário, o que requer repensar na escola o seu sentido como instituição ao serviço da sociedade e da comunidade, como serviço público.
O que significa isto? Que a escola não pode ser só escola e que as aprendizagens não podem ser só curriculares, se verdadeiramente estamos convencidos de que a educação deve ser um processo permanente que se estende ao longo da vida, e que todos somos participantes do projeto de educar e de educar-nos, quer dizer, autoeducação no sentido individual e coletivo.

A questão da educação ao longo da vida remete para o relatório de 1996, coordenado por Jacques Delors...
No fundo, é o ‘tesouro’ que ele dizia que tínhamos de descobrir. É uma metáfora, que reconhece quatro pilares básicos da aprendizagem: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser. O desafio é imenso. E as políticas educativas, sociais e culturais devem situar-nos nesse horizonte não só como utopia, mas como realidade, como projeto que vale a pena construir pedagógica e socialmente e como trajeto em que temos de nos inserir quotidianamente. Eu creio que isso dá um grande protagonismo aos profissionais da educação, a qualquer pessoa que, no seu exercício profissional, mas também cívico, assume a responsabilidade de educar com outros e de educar a outros, como pai, mãe, vizinho, cidadão.

E daí advém a questão da ética profissional docente, que atualmente também está na agenda educativa portuguesa...
Claro! Porque nos compromete e nos responsabiliza. Não para defesa da profissão com um sentido corporativo, que até pode ser legítimo, mas para construir desde o interior e para o interior da profissão o seu dever ser. No fundo, falamos de uma ética pública, de uma ética cívica: como serviço público, a nossa responsabilidade é para com as pessoas que se educam connosco, com as quais e para as quais desenvolvemos o nosso trabalho. Especialmente as que estão em situação de pobreza, de exclusão, de vulnerabilidade, as quais o sistema educativo muitas vezes etiquetou como fracassadas e que são abandonadas à sua sorte e aos azares. É aí que esse compromisso, essa responsabilidade, assume um sentido sobretudo ético, de ética pública.
Há aqui uma questão importante, em que eu insisto muito, porque torna muito interessante a profissão docente, e, em geral, todas as profissões educativas: ao mesmo tempo que cada um de nós tem de se construir como cidadão, temos a explícita responsabilidade – que outras profissões não têm – de ajudar a que outros se construam na cidadania.

É essa a máxima especificidade do profissional da docência e da educação?
Sem dúvida. Eu partilho dessa ideia, ainda que possa ser objeto de debate e discrepância. Nós não nascemos cidadãos, construímo-nos como tal, se verdadeiramente nos situamos numa ideia de cidadania congruente com tudo o que significam os direitos e os deveres da convivência com os demais, que se movem sempre num quadro de tensões ideológicas, éticas, morais, religiosas, económicas, etc. No fundo, a sociedade mostra-se no que determina as igualdades, mas também as desigualdades, as justiças, mas também as injustiças. Então, construir os valores que nos permitam caminhar para uma cidadania inclusiva, democrática, solidária, tolerante, pacífica... Palavras que engrandecem a condição humana.

Que é a missão da educação...
Uma missão partilhada por todas as instituições educativas, especialmente a escola, pela responsabilidade contraída com a infância, sobretudo, na hora de desenvolver o seu projeto educativo, pedagógico, didático e, sobretudo, cívico. No fundo, seria revolucionário – porque não há uma economia na sociedade que o torne possível – que a escola fosse muito mais do que uma escola: uma instituição comunitária e social, que não feche metade dos dias do ano, que não esteja aberta apenas uma quarta parte das 24 horas do dia; uma escola que ponha as instalações desportivas, os equipamentos informáticos, a biblioteca, os pátios à disposição da infância, do bairro, dos adolescentes, que muitas vezes não têm para onde ir; uma escola que seja um centro cívico, um centro cultural, que articule as suas iniciativas com outros centros sociais...

Falamos de uma escola-instituição com um projeto educativo que vá além dos programas disciplinares.
Claro! E muito mais do que ser vista apenas como um edifício. É uma arquitetura, obviamente, mas é uma arquitetura social e não só física. Não é um espaço que só deve estar à disposição de um calendário e de um horário escolar, que é restrito. O que significa, se entendemos que outra escola ou outra educação é possível, que nesse projeto educativo participem outros agentes sociais, além dos educadores e professores, que podem ser profissionais da animação sociocultural, da mediação familiar e intercultural, das iniciativas e práticas desportivas, culturais, etc.

E isso não é uma utopia?
Não pode sê-lo. Se a sociedade quiser tirar consequência práticas de que a educação é o mais importante que podemos dar às novas gerações, se há dinheiro para salvar as entidades financeiras, se há dinheiro para autoestradas... Como não haveria de haver dinheiro para as pessoas? Se não houver investimento junto das pessoas que sofrem dificuldades, que têm problemas de integração, no final, vamos gastar muito mais no trabalho de reparação do que no trabalho de prevenção, de cultivo – porque educar é cultivar as pessoas.

Nessa perspetiva, quais são os grandes desafios que hoje se colocam à Escola?
Há um desafio que eu diria imaterial, mas possivelmente o primeiro de todos, que é repensar-se a si mesma, no sentido de participar de uma educação que tem de ser distinta, que tem de ser alternativa à que temos vindo a herdar há décadas e mesmo de séculos. Isto tem a ver com posicionamentos filosóficos e teóricos da educação especialmente importantes e necessários para construir outra formação de quem, profissionalmente, vai desenvolver um trabalho educativo: os educadores, os professores e, em geral, todos os que assumem a responsabilidade de fazer uma educação diferente. Então, é necessária uma mudança de mentalidade, de parâmetros educativos, de levar à prática o que está nas palavras, nos conceitos, no que dizemos que deve ser a educação e, porém, ainda não é. Desafio? Ser coerente na transição para um novo modo de pensar a educação e as suas práticas nos distintos cenários em que ocorre. E a escola é um entre outros.

Esse desafio visa, também, o ensino e a aprendizagem...
A questão não é tanto como ensinamos, mas como aprendemos; não é tanto o educar, mas como educar-nos em comum... Como conseguimos que as pessoas construam autonomamente, desde si e por si, as aprendizagens? No fundo, é um processo de emancipação e libertação que depende daquele que nos ensina, de que necessitamos como mediador e facilitador, que articula, sistematiza e transmite conteúdos, ensinamentos, atitudes, comportamentos. Tem de ser uma educação, uma formação, em que não se aprende só a fazer; um fazer vinculado, e muito, ao mundo laboral. Mas não pode ser apenas para o mundo laboral, e aqui entra uma das mudanças fundamentais que a Educação Social e a Pedagogia Social estão a promover – hoje em dia, tanto ou mais importante do que o tempo laboral, é o tempo dos ócios, e o direito ao ócio, para o qual as sociedades não estão preparadas. Associada a consumos e dependências, havia que dar uma volta à expressão, para que o tempo de ócio seja verdadeiramente um tempo livre.

Se entendido como tempo de reflexão, criação e fruição, o ócio tem potencialidade educativa?
O ócio começa por ser um direito. Um dos nossos escritores, José Luis Sampedro, que foi catedrático de Economia, dizia que a educação deve preparar-nos para ‘ser vividores’. Dizia que, lamentavelmente, a expressão ‘vividores’ acabou por ter um sentido pejorativo, quando viver é o realmente importante. Creio que com o ócio se tem passado algo similar. O ócio, na contemporaneidade, nasce de uma vontade inequívoca de nos darmos a oportunidade do descanso, para satisfazer necessidades básicas; a oportunidade do divertimento, associado à cultura, às artes, enfim, às afeições pessoais; e a oportunidade do desenvolvimento pessoal. É um tempo para mim mesmo. E neste sentido, está reconhecido como um direito de 3a geração. Portanto, é um tempo livre – e a palavra liberdade tem todos os sentidos que lhe quisermos atribuir. A liberdade, já dizia Paulo Freire, é uma prática que necessita de ser educada e em que devemos educar-nos, porque nela está muito do que é a nossa razão de ser. Então, o ócio deve ser a oportunidade de que cada pessoa dar o melhor de si, e muito desse ‘melhor de si’ tem a ver com a leitura, a música, o desporto... Isso é ócio; o ócio não é levar-nos ao fare niente.

De certo modo, o ócio é um conceito pejorativo, por um lado, e um privilégio associado ao poder económico...
Há um livro de Bertrand Russell [«O Elogio ao Ócio»], onde ele, que foi um grande trabalhador e militante de muitas causas, reivindica o direito ao ócio como um direito de cada pessoa à construção da felicidade. E o que estamos a tentar é que o ócio se dê a oportunidade de construir-se de outro jeito. É por isso que reivindicamos uma pedagogia do ócio. De facto, e isto é curioso, uma das grandes obsessões da educação, particularmente da educação escolar, tem sido preparar para o mundo do trabalho. O mundo laboral diz que os alunos não estão suficientemente qualificados para se incorporarem nele e, inclusive para os melhores, nem sempre lhes destina um trabalho. Portanto, a conexão entre a escola e aquilo que diz ser o seu objetivo fundamental, que é preparar para o trabalho através das qualificações, não se consegue. Por outro lado, quanto mais vivemos, menos tempo temos ligado ao mundo laboral, pelo menos, formal. De tal modo que as novas gerações, inclusive as educadas na escolaridade obrigatória, chegam à aposentação e não sabem o que fazer com as suas vidas, porque o tempo livre é visto quase como uma ameaça. E no mundo dos mercados, quem está a construir as ocupações destas pessoas? O consumo, que significa desigualdade de oportunidades. Quem pode participar dos ócios feitos negócios? Quem tem capacidade de consumo...

Quer dizer, além de educação para todos também precisamos de ócio para todos, de oportunidades de ócio para todos...
Claro... Dizia um dos nossos filósofos, Luís Racionero, que o ócio é um direito que deve ser educado, numa sociedade que também nos tempos livres tem diferenças muito acentuadas entre os diferentes coletivos sociais: o tempo livre das mulheres é muito inferior ao dos homens, o tempo livre das sociedades rurais é muito inferior ao das sociedades urbanas, o tempo livre da infância é absolutamente dependente das condições de vida das famílias... Então, no ócio há que construir a igualdade, mas também a justiça social. Nas sociedades clássicas greco-latinas, ócio e negócio estavam diferenciados; nos tempos modernos, enquanto uns ‘ociam’, outros negoceiam com esse ócio. Podemos fechar os olhos e dizer que isto não é uma preocupação da educação e da escola ou começar a entender que é, e muito.

O respeito vai muito mais além do que a tolerância.

A escola deve tomar opções ou tem de ser neutral?
A ideia de que a escola é neutral, no fundo, é já uma rutura dessa neutralidade. O mesmo com o dever ser apolítica ou estar à margem da política. Todos as pessoas que participam na educação, consciente ou inconscientemente, tomam decisões a respeito de um aluno, criança ou jovem, e, no fundo, da sociedade. Não podemos separar de nós tudo o que significa ter ideias, valores, pensamentos, atitudes... Porque com elas educamos, implícita ou explicitamente. O importante é fazê-lo com o máximo de coerência, congruência e transparência, clarificando quem somos, que ideia temos da educação, como a queremos pôr em prática. Entendendo que nesta procura de congruência, a diversidade é um elemento consubstancial à prática educativa e à própria condição de cidadãos.
Educar na cidadania ou para a cidadania – digo muitas vezes com a cidadania, que é o grande desafio – não significa educar na uniformidade, num modelo de pessoa e de sociedade; significa educar em todas as opções em que podemos ser pessoas e sociedades, individual e coletivamente. E construirmo-nos individualmente não é contraditório com o que significa construirmo-nos socialmente. No fundo, são os grandes desafios existenciais que temos pela frente e que, para dar uma amostra da nossa diversidade e variabilidade, nos devem levar a ir mudando ao longo da vida, a respeito do que pensamos e fazemos. Agora, isso requer diálogo, compreensão, entendimento, respeito pelo outro, e não só tolerância. Se voltarmos à educação inclusiva, tolerância é uma palavra que se utiliza com frequência, mas muitas pessoas não querem que sejamos só tolerantes com elas – querem que sejamos respeitosas. O respeito vai muito mais além do que a tolerância.

Quando fala de diálogo...
É um diálogo que abraça tudo, na lógica dos abraços de que falava Eduardo Galeano. Obviamente o abraço que eu dou a quem tenho perto de mim, mas no fundo, é um abraço à humanidade no seu conjunto e em toda a sua diversidade. O que também me problematiza, porque significa que tenho de estabelecer diálogo não só com aqueles que estão numa atitude de abertura a esse diálogo. O diálogo com quem compartilhamos ideias e pensamentos é relativamente fácil; o problema é como construímos o diálogo com quem é diferente, mesmo com aquele que à partida nega a possibilidade de dialogar. Este, sim, é um desafio cívico e político, que não significa ter de renunciar aos próprios princípios e valores, mas buscar tudo aquilo que pode fazer pontes e estabelecer caminhos em comum.

E que implica troca. Todos aprenderem com todos...
Implica troca. Algo que em termos políticos, sobretudo, mas também educativos, é difícil e muito complicado. Se eu reivindico a mudança dos demais e da sociedade, não posso negar-me a mudar eu mesmo. Uma mudança individual, biológica, mas também do que nos faz sociais. E isso, sim, é uma missão educativa. Quando perguntamos o que é um professor, um educador, eu digo há muito tempo que é um profissional da mudança, da troca.

Um profissional cuja a importância é muito reconhecida, mas não é valorizada... Não há aqui uma contradição?
Claro. A sociedade está a dificultar mais do que nunca... Ser professor significa assumir tudo o que essa identidade e entidade profissional, mas também social e cívica, requer: compromisso, responsabilidade, ética. E aí, as universidades ainda têm um caminho por percorrer; quase nenhum plano de estudos contempla o que significa uma formação ligada a esse código ético deontológico e profissional.

E qual deverá ser o papel da formação na renovação da profissão, sobretudo, na sua transformação?
Há um jogo de palavras interessante, a partir da palavra ‘formação’, que, no fundo, é o que queremos pressupor como fundamental para construir pedagogicamente, academicamente, cientificamente um determinado âmbito profissional. A palavra ‘formação’ pode levar-nos à conformação – pela qual passamos a fazer parte de uma engrenagem no que se trata de reproduzir ou perpetuar um determinado sistema, ainda que não gostemos – ou à transformação, que é o grande desafio da educação, porque para ela contribuímos de modo intencional, implícita ou explicitamente, quando definimos um projeto curricular, um projeto pedagógico. A educação é sempre intenção. É sempre uma proposta de mudança. E voltamos à coerência: temos de clarificar perante a sociedade que tipo de mudança queremos para ela, começando pela formação dos alunos.
Há aí outro jogo interessante, que é posicionarmo-nos a respeito da educação que temos, e isto requer estudo, análise, explicação, interpretação dos sistemas educativos e das práticas educativas na sociedade em que estamos; outra é perguntarmo-nos de que educação necessitamos, que é muito distinta da educação que temos, da que queremos e mais ainda da que reivindicamos. São realidades completamente diferentes: a que temos é a que há, no que gostamos e desgostamos; a que necessitamos é tudo aquilo que ainda está por ser educação; a que queremos é a que no pensamento, nas leis, nas reformas, nas inovações nos pode dar melhor educação; e a educação que reivindicamos, onde, aí sim, tem de haver um compromisso ativo, um posicionamento que é político, que é axiológico, que é ideológico, porque não? Porque é que a palavra ‘ideologia’, que é uma derivação das ideias, não pode ser um horizonte em que construamos as utopias da educação e da sociedade?

Voltando ao ‘ser professor’... Um professor nasce ou faz-se? E outra questão: para ser professor, é preciso, sobretudo, ter um projeto educativo, ou pelo menos uma ideia de projeto educativo...
Nisto, eu sou muito ‘orteguiano’. De Ortega y Gasset. Os professores são eles e as suas circunstâncias. O ‘eles’ implica nascer e ter capacidades, destrezas e potencialidades que vamos desenvolvendo e que alguém nos ajuda a desenvolver. E que, no mundo das profissões docentes tem a ver com aqueles a quem devemos muito do que somos. Muitas das “vocações” docentes nascem daqueles professores que nos marcaram e que, em algum momento, nos levaram quase a dizer “quero ser como ele”.

São referências.
São referências, das quais seremos sempre devedores. A partir dessa identificação, desse ADN social, há um conjunto de circunstâncias que podem ir determinando se efetivamente existe a vontade de ser professor. Não é uma vontade messiânica ou mística; é uma vontade em que a estima, o apreço e a valorização da educação concorrem para que eu queira dedicar-me a ela e construir uma identidade profissional como professor, como mestre. É aí que, efetivamente, a educação nos abre um trajeto a percorrer. Mas com projetos... E claro, o professor faz-se nesse trajeto, na convivência, nas leituras, nas escritas... Falo da convivência cidadã, mas também com os colegas, porque, indubitavelmente, ninguém pode ser professor sozinho – é-se professor com outros. E à escola cabe o protagonismo de ter das poucas profissões e de ser dos poucos espaços e tempos onde ainda é possível o encontro e a inclusão. Todas as outras solicitações, de certo modo, são para que nos separemos: o computador é, por princípio, pessoal, individual; os telemóveis são pessoais, individuais...
Onde se vai poder construir a comunicação, o diálogo, o encontro, desde a primeira infância, entre as pessoas que vivem em sociedade? Possivelmente na escola. E a partir da escola, como um dos objetivos do seu projeto, na convivência social. É que a sociedade, quando supostamente mais avança tecnologicamente, mais nos faz crer na ilusão de que vivemos conectados. E é curioso que a expressão ‘redes sociais’, no fundo, designa o que são simplesmente redes tecnológicas. Se analisarmos bem, aí não há redes sociais... As redes sociais são as que estabelecemos nós aqui. Então, se um professor tem o sentido do coletivo, do comum, da comunidade, ele tem de construir e de se construir. Se perguntarmos a cada professor quanto crê que da sua situação advém do nascimento e do ter-se feito, creio que ninguém poderá estabelecer a fronteira com clareza. Eu não saberia dizê-lo.

Alguns, provavelmente, nunca pensaram nisso, nem têm consciência dessa possibilidade...
A consciência está ligada ao ser, não simplesmente ao estar. Para o estar vale a ciência: qualquer um pode adquirir saberes através de formação académica e transmiti-los. Mas para ser, é preciso consciência. Não basta saber de um assunto e ter a capacidade de o explicar; há que construir empatias, há que ver quem, num dado momento, pode precisar de mais de atenção do que outros, há que ter a visão de conjunto da aula sem perder a visão de cada aluno, há que saber o que significa Manuel como aluno e Manuel como criança que tem uma vida que não está apenas na aula, nem sequer na escola, e que, no fundo, é o que realmente nos deveria preocupar.

Perceber que significados cada criança leva para a escola e da escola...
Essa era uma ideia muito de Summerhill: corações, não apenas cabeças. Além do que podemos ter e construir com informação e conhecimento, que é muito importante, necessitamos de emoções, de sentimentos, alegrias, tristezas, talvez depressões... Esse é o valor da educação.

Na intencionalidade de Summerhill, não estava presente a formação de engenheiros, advogados, médicos, de mão-de-obra laboral. O objetivo era ter crianças felizes, a aprender em liberdade e de acordo com os seus ritmos...
Não podemos distinguir a felicidade que nos pode dar o trabalho da infelicidade em que podemos cair quando o trabalho acaba. Que é a situação de muitas pessoas, num cenário, às vezes dramático, de não saberem o que fazer, de não terem outras opções fora de um tempo e de um espaço que estava ocupado e predeterminado. É um tempo importantíssimo.
No fundo, voltaria à ideia da educação em liberdade para a liberdade. Temos trabalhado com alguns prisioneiros. A prisão define-se, entre outras coisas, pela privação da liberdade. Porém, nos estados sociais, democráticos, de Direito, outorgamos aos sistemas penitenciários uma missão fundamental que é a reinserção social. Portanto, educar para voltar a ser livres. E como se pode educar para a liberdade em situações de aprisionamento? É um desafio imenso, mas alguém tem de fazê-lo. Educar para a liberdade continua a ser um dos principais desafios da educação. E, curiosamente, é o que fundamenta, juntamente com a palavra ‘dignidade’, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Liberdade política, liberdade económica, liberdade de pensamento... E como se constrói isso, se não for com cada pessoa em concreto? Com cada criança, cada adolescente e cada adulto que é educado para exercer ao máximo a sua capacidade de liberdade?

A nossa vontade de aprender não tem limites

Falamos do papel fundamental dos professores, quer na passagem de conhecimento, quer na educação para a liberdade. Considera que essa importância, de um modo geral, é suficientemente reconhecida e valorizada?
Não, lamentavelmente, não! Creio que, de um modo ou outro, acabamos sempre por recordar e valorizar os professores que foram significativos nas nossas vidas. Não imagino alguém que não tenha tido a sorte de ter diante de si, ainda que por umas horas, um bom professor. Creio que todos nos lembramos de um professor ou de uma professora que foram decisivos na nossa vida, porque com eles fizemos uma experiência ou descobrimos algo distinto. Outra coisa é se esta representação, que é individual, acaba por ser social ou coletiva, e aí eu creio que o professorado não tem o apreço, a estima coletiva, social e profissional que a sociedade lhe deve dar. Isto significa investir o máximo na sua formação e um reconhecimento retributivo que valorize a sua prática profissional; mas também lhes deve ser exigido que sejam o mais congruentes e consequentes possível com o que significa a condição de ser professor. Para mim, quem deseja ser professor, tem de ter absoluta convicção de que realmente o quer e, a partir daí, formar-se e profissionalizar-se, assumindo a responsabilidade de ensinar e, ao mesmo tempo, de aprender permanentemente. Creio que nós, professores, devemos mostrar à sociedade que a nossa vontade de aprender não tem limites.

Duas questões para terminar... “A utopia é consubstancial à educação”. Quer desenvolver?
No fundo, a utopia é uma esperança. Paulo Freire ilustrou isso muito bem com a sua «Pedagogia da Esperança» como uma releitura da «Pedagogia do Oprimido». Na utopia estão as ideias, está aquilo que ainda imaginamos que pode ser conseguido, ainda que entendamos que seja difícil. Possivelmente, este é o máximo de cada ideal que nomeamos de justiça, de liberdade, de paz, de felicidade... Se não tivéssemos utopias, possivelmente, nem sequer podíamos imaginar que por trás do momento que estamos a viver há um futuro. E a educação é sempre para o futuro. E aí estamos noutro jogo de palavras: uma das linhas de pesquisa que mais me emocionam tem a ver com os tempos educativos e sociais. Por isso, falamos de ócio como tempo social e educativo. Bom, o que é o passado? O que já foi, que já não está; pode ser memória, enquanto tivermos capacidade de memorizar, pode ser histórias (e aí alguém que as relate como tal) de grandes acontecimentos ou de pequenos casos do quotidiano. O que é o presente? O que nomeamos e quando o dizemos já deixou de estar. O que nos fica? O futuro – e a utopia, no fundo, é essa imagem de futuro.

Eduardo Galeano diz algo sobre isso.
O que aguardamos que venha, sem ter nenhuma certeza de que pode vir. Dizia Galeano: para que serve a utopia? Bom, quanto mais não seja, para caminhar. E o que é educar, se não caminhar? Por isso, a mim parece-me que necessitamos de utopias que nos iluminem, que sejam uma luz, e não só a nossa. No fundo, a grande utopia que temos na educação é que não estamos apenas a educar a nossa vida, como estamos a educar a vida dos outros, dos que nem sequer sabemos nada, porque a maioria deles ainda não nasceram. Então, parece-me que a utopia é uma palavra que gera rebeldia, uma palavra que nos desafia continuamente. É um alento.

“Somos professores, damos rosto ao futuro”. É uma boa síntese?
Sim. No fundo, simbólica ou materialmente, o que estamos é a construir rostos desse futuro. Este é o despreendimento que necessariamente há que ter, simplesmente por uma condição de humanidade, de que eu não posso esgotar o mundo em que vivo, porque tem de ser o mundo dos que ainda têm de viver. A que nos leva esta depredação contínua de recursos? A esgotar o mundo para nós e a deixá-lo completamente inservível para os que devem vir depois. É de um egoísmo atroz... Creio que temos de fazer hoje o possível para que tenham futuro. A educação é isso. É muito paradoxal, mas, no fundo, a utopia é uma necessidade.

Falámos da enorme responsabilidade dos professores na formação de cidadãos, no que isso exige de reflexão, de autocrítica, de posicionamento ético; falámos de relações, de diálogo, de aprender com outros, de ser e estar. O que lhe pareceria uma iniciativa no sentido de a relação educador-educando ser declarada património cultural imaterial pela UNESCO?
Subscrevo radicalmente a proposta. E se chegar a concretizar-se – o que não deixa de ser um tanto paradoxal, o imaterial concretizar-se em algo material, como é uma declaração –, esse caminho para o reconhecimento do que são os professores, quanto mais não seja, daria a oportunidade de uma certa mudança de olhar. Eu utilizo muito duas expressões para estabelecer os objetivos que quero conseguir com os meus alunos: sentido e sensibilidade. Situaria essas duas expressões no que isto pode dar a significar, dar sentido, dar razão de ser, dar fundamento, dar argumentos, dar oportunidades na relação; e, por outro lado, sensibilidade, aquilo que identificamos como patrimonial, como simbólico, como belo, como formoso, que nos sensibiliza e sensibiliza os outros.
Então, não sei onde pôr uma assinatura, mas creio que isso criaria, primeiro, uma corrente de autoestima e, logo, de estima social imparável, porque poucas profissões dão tanto à sociedade e ao mundo como a profissão docente. Creio que é justo e necessário que algo assim aconteça, frente ao mundo líquido, gasoso, desconcertado, desajustado em que estamos.

António Baldaia e Maria João Leite (entrevista)
Fernando de Valenzuela (fotografia)


  
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