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Relação educador-educando: património da humanidade?

Educadores e professores são frequentemente referidos em memórias pessoais como figuras marcantes, recordadas pelas suas qualidades relacionais. De facto, na base da relação que aproxima educadores e educandos acontece um encontro de características únicas, que faz do ato de educar/ensinar uma forma muito particular de atividade humana. Experiência de sensibilidade, criatividade e autoridade, geradora de uma alquimia incomensurável e intangível, essa relação explica a dignidade, especificidade e relevância da condição docente. Ao colocar a relação professor-aluno como questão educativa agregadora, a PÁGINA lança um debate que se pretende mobilizador em torno da possibilidade de candidatura da relação educador-educando, em sentido lato, a Património Imaterial da Humanidade, junto da UNESCO. Nas páginas seguintes, quatro docentes em diferentes contextos profissionais respondem às seguintes questões:

1. Escolher e comentar uma das afirmações: mais do que qualquer outra classe profissional, os professores são os guardiães da civilização (Bertrand Russel); os professores são indispensáveis e têm um poder único (Sérgio Niza).
2. A relação pedagógica é a pedra angular do processo educativo? E da afirmação da condição docente?
3. Alguns comentadores consideram que está a verificar-se uma desvalorização da relação pedagógica, distanciando cada vez mais professores e alunos. Também se fala em proletarização da função docente...
4. Num estudo recente (Fenprof/Universidade Nova de Lisboa), quase metade dos 15000 professores inquiridos demonstram sinais preocupantes de exaustão emocional, mas um baixo índice de despersonalização; apesar de tudo, os professores gostam dos alunos e de ensinar...
5. Nas memórias significativas do seu percurso escolar, pesam mais as pessoas ou os processos de ensino?
6. Apoiaria uma eventual candidatura da relação educador-educando a Património Imaterial da Humanidade?
7. Que impacto poderia ter esse processo junto da comunidade docente e na valorização da profissão?

 

AMÉLIA LOPES
(professora na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto)

O professor entusiasma, resgata, traz outros mundos ao mundo


Em Portugal, “os bons alunos não querem ser professores” (Observador, 18.01.2018, citando como fonte DGES/Expresso). Lecionando na formação inicial de professores, concordas? Que motivações/expectativas manifestam os jovens candidatos a professores?

Dois aspetos a destacar: um diz respeito à conceção de bom aluno, o outro à relação entre a imagem social de uma atividade e aqueles que escolhem realizá-la. Na notícia referida, bom aluno é aquele que tem determinadas médias de entrada no Ensino Superior. É verdade que na Finlândia a entrada em cursos de Ensino é tão renhida como nos de Medicina e, às vezes, até ganham os de Ensino! Este valor dado à profissão acontece também noutros países ou Estados que têm em comum o facto de valorizarem a profissão docente, quer em termos materiais (remuneração; condições de trabalho) quer simbólicos – o ensino é considerado uma atividade especializada para a qual é necessária uma formação especializada – e não se está a falar apenas de conhecimento de conteúdo. Portugal tem os professores melhor qualificados da Europa, mas, como acontece ou aconteceu noutros
países, temos cada vez menos jovens a escolher os cursos de formação de professores. Por isso, é urgente valorizar a profissão, a formação e a relação educativa.

1. Embora a palavra ‘poder’ surja, para a maioria das pessoas, como algo imposto ou que impõe, o poder de influenciar e a possibilidade de ser influenciado é uma característica humana – por exemplo, gostamos de dar conselhos e muitas vezes pedimos conselhos. O poder social é este. O poder dos professores é também este e muito mais. Não falo do poder autoritário; o que dá especificidade ao poder dos professores – tornando-os indispensáveis – é o poder de referência. O professor influencia, tem poder, na medida em que se torna uma referência, em si mesmo, pela forma como estimula, se comporta, fala ou comunica, mas também pelas referências que dá: conhecimentos, autores, técnicas... O poder de referência é o poder de criar adesão, desafio, vontade de saber, mas também de dar chão, lugar, segurança, sentimento de irmos, e de irmos juntos, no caminho. Mas o caráter especial do poder do professor é também o de emancipar, libertar, abrir a porta à participação nas decisões, sobretudo àqueles que, insistentemente e de formas diversas, são colocados à margem dessa possibilidade. De forma muito sintética, podemos dizer que o poder do professor está no conhecimento. Mas o conhecimento do professor está impregnado da sua pessoa – toda a passagem de testemunho é assinada; o professor entusiasma, resgata, traz outros mundos ao mundo pessoal – que são tantos e tão complexos, hoje.

2. Sem dúvida que a relação em que se produz, suporta, elicita e apoia a aprendizagem é o cerne do processo educativo. Ela implica conhecimentos de conteúdo, didáticos, sobre os alunos (famílias, lugares de residência...), sobre o sistema educativo, os currículos, os programas, os métodos e as técnicas... E também sobre os grandes desafios do mundo e das formas de vida contemporâneas, criatividade, sensibilidade e cultura. Hoje, tal como se disseminam falsas notícias, também se divulgam falsos conhecimentos, proliferam ‘descobertas’ já conhecidas e vestem-se conceitos antigos com novas roupagens – só um conhecimento alargado do mundo, da vida e do esforço de humanização que a arte e a cultura nos dão permitirá ao professor resistir, com e pelos alunos, à disseminação da ignorância. A relação pedagógica marca para toda a vida, provocando identificações e rejeições, mas também alegrias e tristezas. Por isso, ela não pode ficar apenas ‘na’ sala de aula – a qualidade desta relação pedagógica depende das relações pedagógicas da comunidade educativa mais geral: nas salas de aula e nos corredores, na cantina, na sua organização e formas de poder... As escolas estão impregnadas de relações pedagógicas (ou não) que ajudam (ou não) à relação pedagógica.

3. Toda a relação é tempo. É o tempo, a duração, que distingue um encontro de uma relação. A relação pedagógica é tempo longo – acontece numa aula, mas ao longo do ano, de uma aula para a outra, de um mês para o outro, de um período para o outro. Esta relação de tempo longo, de que nunca se fala a não ser para a planificação, é de extrema importância: é caminho a ser feito juntos, com paisagens e recantos diversos, obstáculos e entusiasmos, dias e noites, problemas e soluções. A intensificação e a burocratização do trabalho – formas atuais mais perigosas de sujeição das subjetividades (para lembrar Foucault) nos quotidianos – atingem de forma muito particular o trabalho docente e, portanto, a relação pedagógica. Exigir tempo, criar tempo, para uma relação pedagógica de qualidade será uma das mais importantes reivindicações dos professores, não só para resistir a tentativas de proletarização, mas, sobretudo, para a realização de progressos irreversíveis nas dinâmicas de profissionalização dos professores.

4. Os estudos sobre burnout e mal-estar dos professores já têm décadas. A profissão docente, como profissão especial de ajuda e de grande intensidade de relações humanas, é de alto risco. E em cada país, de acordo com a história, a economia e o estado de desenvolvimento do sistema educativo, há momentos especialmente críticos a este propósito, aumentando o sentimento de desgaste. Hoje, o perigo para os professores vem da intensificação do trabalho e das lógicas performativas vazias de conteúdo que fundam as formas de reconhecimento e valorização profissional em visibilidades espetaculares. Perante as dificuldades, o cansaço e o esvaziamento do sentido do trabalho docente, para muitos professores, a relação com os alunos, como o real em Sophia, é “salvação e vida”. Mas ainda assim esta alegria que os professores com o coração a pulso conseguem rapar do prato do quotidiano é uma alegria minimal, de resistência, sofrida. A docência deve ser remunerada, prestigiada, organizada, formada e cuidada como profissão especial que é para a humanidade – uma profissão onde a diferença entre o excelente e o bom é circunstancial (adoto propositadamente as categorias da avaliação do desempenho), e por isso dispensável, mas onde a diferença entre o bom e o suficiente é de toda a importância.

5. Sempre as duas coisas aparecem juntas, com o conhecimento bem visível – quero dizer, nunca um ‘bom’ professor ou uma ‘boa’ professora aparece sem o ‘bom’ conhecimento que se lhe associa, mas o ‘mau’ conhecimento também nunca aparece sem a ‘má’ pessoa que se lhe associa. Tenho sobretudo duas lembranças. Uma a transparência extraordinária da professora Madalena Garcia, no meu 7º ano – nada daquela Matemática do Secundário era difícil, tudo claríssimo como água de um pequeno riacho. Outra, a professora de Biologia e Geologia, Ermelinda Queirós, pelas atividades em que nos envolvia – recordo especialmente uma pesquisa de filões magmáticos na praia de Lavadores: era de noite, a camionete tinha de ir embora, a professora chamava, e nós, alunas, continuávamos completamente absortas na nossa entusiasmada pesquisa.

6. Sem dúvida.

7. Em primeiro lugar, terá impacto na comunidade em geral, e isso é crucial para a comunidade docente e a valorização da profissão. Em todos os países com sistemas de ensino de qualidade, como disse, a profissão docente é reconhecida como profissão de prestígio e com uma base de conhecimentos sólida. Mas permitirá também que a relação educador-educando seja observada na sua inegável riqueza humana e no seu insubstituível papel de construção do futuro.

 

ANABELA SOUSA
(diretora do Centro de Formação Júlio Resende)

O poder do professor vai muito além de si ou da sua ação concreta


Que perspetivas sobre a profissão, o seu exercício e as suas carências te oferece a direção do Centro de Formação Júlio Resende?
O desafio de sair da sala de aula para um lugar mais amplo, onde se promove a reflexão e ação, tem permitido conhecer e perspetivar outros modos de fazer escola e de ser professor. Ainda recente, esta experiência revelou um espaço privilegiado do sistema educativo, pelas relações que permite estabelecer entre profissionais, pela oportunidade de observar as (des)articulações entre diversas dimensões e a operacionalização de medidas de política, pelo espaço construído colaborativamente com as escolas que se associam, reúnem, refletem e tomam decisões, num exercício autêntico de autonomia que visa o desenvolvimento dos profissionais. Este lugar estratégico, do ponto de vista de pensar e preparar a ação, proporciona também o contacto com muitos docentes, com as suas angústias e com as dificuldades que apontam ao exercício da sua função. Apesar da aproximação entre a formação proposta e as necessidades identificadas, persistem muitas preocupações com o desenvolvimento profissional: algumas dimensões a que a formação não responde, o tempo utilizado em funções consideradas pouco relevantes para o sucesso e as aprendizagens dos alunos, permanecem e muitas vezes atravessam os momentos de formação.

1. Os professores têm um poder único, de tão amplo, desafiante e diverso, que não se restringe ao que é atribuído ao seu papel social. É um poder que se alicerça nas suas práticas, como algo que se efetiva nas relações que estabelecem com cada sujeito/aluno. Um poder que se institui nas opções e na intencionalidade da ação com os alunos. Poder de especialista que se diferencia dos demais por colocar o saber ao serviço da construção das aprendizagens dos alunos. Poder que se implica na construção do poder do outro, com o qual se relaciona. Poder que se estabelece no compromisso e na confiança da relação pedagógica. Trata-se de um poder/saber que propõe o contínuo abandono das certezas, num desconforto desafiante que permite a todos (ao próprio, aos alunos, aos pares) aventurarem-se na construção de si para além do lugar e do tempo preparado e planeado. Esse poder de realização em espaços/tempos em que o professor já não exerce a relação pedagógica direta é, por isso, um poder que vai muito além de si ou da sua ação concreta em cada aula. É um poder que desafia o professor em cada ação do presente e o compromete com o futuro na construção de novos modos de interpretar o mundo em cada um dos seus alunos.

2. O processo educativo concretiza-se num espaço de relação com saberes, culturas e experiências, consigo e com os outros. Neste processo de interação, pleno de tensões entre o passado aprendido, os saberes em reorganização permanente e novas interpelações, acontecem aprendizagens. Esta relação de aprendizagem institui-se de modo intencional, organizado, planeado no tempo e no espaço da interação pedagógica entre professor e alunos. Se aprender transcende este espaço, é aqui que cada docente afirma o seu papel, proporcionando situações que conferem a centralidade ao aprendente e convocam todos os seus saberes para uma atribuição de sentido que, podendo ser considerado único, lhe permite fazer parte de um coletivo, ser crítico e agir. É na atualidade do encontro pedagógico que os docentes se implicam intensamente com a arte de ensinar e, reinventando o engenho de ‘fazer aprender’, edificam um lugar de oportunidades, de comunicação e de partilha – um espaço de desenvolvimento da própria  identidade profissional.

3. A interação pedagógica é mediada pelos modos de comunicação e pelo acesso/poder do conhecimento. Pensar no modo como estes elementos se organizam, hierarquizam e priorizam, no propósito e no uso atribuídos ao ensino e aos papéis dos intervenientes, permite reconhecer que a relação pedagógica se altera sempre que este ecossistema sofre (des/re)equilíbrios. A utilização massiva da tecnologia transforma quase instantaneamente o presente em passado, e o futuro é agora. Entretanto, a informação acessível a (quase) todos, as experiências virtuais, as interações à distância e o modo como outros agentes procuram fazer parte deste espaço, desafiam a soluções criativas para o estabelecimento de uma nova relação pedagógica. Uma relação que, assumindo novos elementos mediadores, continuará a construir-se entre o sujeito que aprende e o professor que ensina, num ambiente que se organiza como facilitador de aprendizagens na singularidade de cada percurso, cada vez mais longo.

4. Nos últimos anos, as políticas educativas e orçamentais têm comprometido as condições de exercício dos profissionais e a qualidade de resposta das escolas públicas: carreiras congeladas, perspetivas de progressão a finalizar num escalão intermédio e exigências de permanência numa atividade desgastante; controlo das aprendizagens por via de avaliações externas que tomavam as fraquezas do sistema como indicadores da qualidade; mudança para um paradigma de educação inclusiva, promotor de alunos à imagem de um perfil desenhado para a saída da escolaridade obrigatória; contexto de flexibilização curricular para as aprendizagens essenciais... Tudo isto gerou enormes desafios de mudança, sem tempo de concretização nem processos de reflexão e de construção conjunta. Este modo de gerir a implementação das medidas de política educativa tem feito aumentar o grupo de resistentes e acentuado o desencanto e a frustração dos que ainda acreditam nos princípios que as fundamentam. O lugar de ‘ser professor’ tem sido limitado, por muitos, ao corredor de liberdade que se concretiza na relação pedagógica com os alunos, o espaço onde ainda acredita poder fazer a diferença, afastado do discurso sobre o seu trabalho produzido por outros, que insistem em ignorar as condições em que ele se concretiza. O lugar seguro onde cada um continua a ‘ser professor’ é a relação que estabelece com os alunos e com a comunidade de que é parte, o compromisso que assume para si e com o percurso educativo de cada aluno e a reinvenção a cada novo desafio.

5. Referências significativas durante o percurso escolar dificilmente permitem dissociar as pessoas dos processos de ensino; em grande medida, a opção que o profissional toma para promover aprendizagens revela muito da pessoa, da sua visão do mundo e do modo como interpela a realidade social. As minhas referências apontam aos professores que usavam os saberes técnicos de ensino e de avaliação ao serviço da arte de fazer gostar de aprender. Tive um percurso feliz: ressaltam memórias de professores que faziam dos ‘seus’ conteúdos desafios à aprendizagem e integração de conhecimentos de todos, apesar da prova de acesso ao Ensino Superior e das muitas provas que as faculdades elaboravam; professores que se orgulhavam do seu modo de ensinar e acompanhavam de perto os seus alunos. A pessoa raramente se afastará do modo como se é professor, como se estabelece relação com os outros, alunos e seus pares, como se posiciona sobre o seu papel e o lugar que atribui ao aluno.

6. Na minha perspetiva, a eventual candidatura a património imaterial inscreve-se como um modo de evidenciar a relevância da relação educador/educando enquanto processo inerente ao desenvolvimento do indivíduo e da sociedade. Apoiaria esta candidatura porque essa relação é única, singular, entre atores sociais que concretizam um processo de desenvolvimento em que ambos/todos os intervenientes, ultrapassando barreiras sociais, culturais ou históricas, dão sentido ao processo educacional, enquanto atores e autores da sua própria aprendizagem e participantes em processos de compreensão e de mudança das sociedades.

7. Além de um momento importante de envolvimento dos professores, numa oportunidade de se afirmarem como detentores de um património único que se realiza na ação concreta da sua profissionalidade, comprometido com o desenvolvimento de indivíduos competentes, livres e responsáveis, este movimento exigiria, necessariamente, a participação e o consenso da sociedade e possibilitaria evidenciar a importância da profissão na construção de uma sociedade mais democrática, justa e equitativa.

 

HELENA MAGALHÃES
(professora na Escola Básica do Fomento - Agrupamento de Escolas de Mirandela)

A relação pedagógica legitima a relevância da condição docente


Em que medida a condição de professora influenciou a tua atuação enquanto foste vereadora da Educação? Essa experiência impactou no teu ‘ser professora’, nas tuas conceções sobre a relação pedagógica?

Creio que a condição de professora teve uma influência marcante no meu desempenho como vereadora municipal da Educação e da Cultura. Foi um grande desafio que abracei e nele projetei a minha vertente questionadora e crítica da realidade e das razões subjacentes a todas as minhas decisões. Procurei trabalhar de forma colaborativa e articulada com várias entidades e parceiros sociais, para responder ao desafio do desenvolvimento integral da cidade e do concelho, sem entrar em querelas e disputas político-partidárias, asseverando trabalho, dedicação e compromisso com a construção de espaços éticos, cívicos e educativos. Foi um período de aprendizagem e de entrega que me afastou da minha zona de conforto. Precisei de me reinventar. Conheci gente dinâmica que me ajudou a promover uma cultura aberta à cidade, onde emergiam, um pouco por todo o lado, várias formas de arte e se entrecruzavam, numa lógica transversal, educação, cultura e ação social. Foi um tempo fecundo, com alguns dissabores à mistura e algum desencanto com atitudes menos éticas, não consentâneas com os princípios de coerência, honestidade e lealdade que defendo – razões que me levaram a querer regressar à escola e voltar a percorrer com os alunos caminhos de aprendizagem solidária, combatendo a discriminação, o preconceito e a exclusão social.

1. Manifesto alguma sintonia com o pensamento de Bertrand Russel em relação à educação e aos professores. Ele defendia uma educação universal obrigatória e valorizava o papel dos professores em benefício da comunidade, transmitindo aquilo que designava por “informação não controversa”, a partir da qual todas as outras seriam edificadas. O papel dos professores deveria ser a salvaguarda contra o dogmatismo, o obscurantismo e o espírito partidário. Tal como ele alheia à “mentalidade de rebanho”, defendo que os professores devem manter-se longe dos estéreis conflitos partidários, num esforço de se elevarem acima de todas as disputas, para se manterem num nível de investigação desapaixonada e científica, preservando a sua liberdade de pensamento, sem deixar de se abrir ao novo e ao divergente. Comungo, também, da perspetiva de Russel quando defende um sistema não repressivo da educação e engloba no conceito de civilização a gnosiologia, o pensamento lógico, a ética, a moral, a justiça social e a solidariedade. Neste sentido, os professores poderão ser os guardiães da civilização, não numa perspetiva solipsista, mas de cooperação e responsabilidade partilhada com outros atores sociais e parceiros educativos.

2. A relação pedagógica é uma relação complexa, dinâmica e multidimensional. Envolve no mesmo enlaço os vínculos que se estabelecem na relação educador-educando, entre educandos, entre educadores, na relação escola-família, na forma como se organiza e avalia o trabalho escolar, nas decisões curriculares, nas dificuldades que se ultrapassam, nas metas que se atingem, no trabalho colaborativo, na reflexão partilhada, nos talentos que se descobrem e desenvolvem, nas emoções que se respiram no espaço educativo, nos projetos de vida que se ajudam a desenhar. Por todas estas razões, creio que a relação pedagógica emerge como pedra angular do processo educativo e legitima a relevância da condição docente.

3. Há alguns estudos que revelam que a satisfação no trabalho dos professores está bastante relacionada com a qualidade das suas relações com os alunos. Sendo professora do 1º Ciclo, lido diariamente com crianças entre os 5 e os 9 anos de idade e a minha perceção é que a relação pedagógica é de grande proximidade. Os professores deste nível de ensino têm, na generalidade, um envolvimento académico e emocional com os seus alunos, que tanto pode ser gratificante como dececionante. Mas a verdade é que a vida familiar e afetiva dos alunos desta faixa etária, os seus anseios, os seus medos, os seus interesses, expectativas e frustrações, assumem capital importância no processo ensino-aprendizagem e não podem ser negligenciados. Não podemos acreditar que sejam meninos capazes de fazer desaparecer, num passe de mágica, a agitação de pensamentos e sentimentos que compõem a sua vida emocional, para logo se disporem a aprender a ler, a escrever e a raciocinar. Na esteira de variadíssimos autores, considero que, no essencial, ensinar e aprender são processos afetivos e que o ambiente pedagógico deve ser um lugar de fascinação e criatividade, de onde a experiência do prazer não esteja ausente. O conhecimento humano nunca é pura operação mental; toda a ativação da inteligência está entretecida de emoções.

4. Penso que vivemos numa época em que abundam discursos que revelam legítimas preocupações ambientais e que, de igual forma, nos devemos preocupar com a reciclagem dos nossos próprios sentimentos, transformando emoções corrosivas, desgastantes e depressivas em emoções positivas, conciliadas e conciliadoras. É inegável que a excessiva legislação e a alteração constante das políticas educativas; a precarização do vínculo laboral; a assunção contínua de novos papéis e responsabilidades; o aumento das tarefas burocráticas e administrativas; a avaliação de desempenho, com as suas contradições e ambiguidades, e os efeitos diretos na progressão na carreira; as turmas muito numerosas e indisciplinadas; um currículo obrigatório sobrecarregado de conteúdos, conduzindo a práticas rotineiras; a falta de liderança centrada nas pessoas e a progressiva degradação da imagem social da profissão docente, constituem, entre outros, fatores que afetam o bem-estar profissional dos professores e contribuem para uma sensação generalizada de esgotamento físico e emocional. Todavia, creio que a referida exaustão emocional não resulta em despersonalização. Os professores não deixam de aprender e de ensinar, não deixam de se questionar, reinterpretar e reinventar ambientes educativos que reconhecem “as pessoas que moram nos alunos”.

5. Pesam mais as pessoas, as suas atitudes, a sua forma de comunicar, os seus discursos positivos e inspiradores. Relembro a paixão pelo saber, a alegria de ensinar e a coragem com que expunham as suas dúvidas e fragilidades. Essas pessoas que marcaram de uma forma muito positiva o meu percurso escolar proporcionaram-me experiências de aprendizagem significativas e prazerosas. Hoje, consigo vislumbrar nestas memórias uma pedagogia fecunda, que promovia o diálogo permanente entre conteúdos curriculares e vivências individuais e coletivas; uma pedagogia que estimulava a participação e fomentava o pensamento autónomo, crítico e criativo.

6. Apoiaria, por considerar a relação educador-educando a pedra basilar do processo educativo e por acreditar que impulsionaria uma reflexão alargada sobre o sistema educativo, a missão da Escola e o papel dos educandos e dos educadores. Certamente, seriam desnudadas inadequações de ordem pedagógica ao discutirmos programas, currículos, condições de trabalho, formas de organização do trabalho escolar e relações interpessoais, dando voz ativa aos alunos, professores e sociedade em geral.

7. Não consigo prever o impacto ao nível da valorização da profissão, mas julgo que incitaria os professores a refletirem sobre as finalidades da sua missão e contribuiria para uma certa desalienação profissional, que caminha a par da tomada de consciência de que frequentemente vivemos obcecados com a eficácia de métodos, sem questionarmos a génese e a teleologia da nossa ação.

 

RUI TRINDADE
(representante de Portugal no Centre for Educational Research and Innovation da OCDE)

Teremos de aprender a ser interlocutores qualificados


De que forma a experiência docente em Angola, Brasil, Guiné-Bissau e Timor-Leste, em diferentes momentos de vida e funções, impactou no teu ‘sentir’ profissional, na tua perspetiva da relação professor-aluno? Alguma vez te sentiste ‘missionário’?

Considero que a experiência na Guiné-Bissau, os dois anos na escola do Bairro do Aleixo (entretanto extinta), alguns projetos de formação contínua como formador e os últimos cinco anos na minha faculdade são momentos de profunda gratificação profissional. Claro que houve outros momentos decisivos (três anos no Arbusto, trabalho com adultos no Bairro do Lagarteiro e mesmo os anos no Instituto Piaget), mas são estes que me interessa destacar, porque, não sendo momentos isentos de sofrimento, angústias, indecisões, e erros, foram momentos significativos, porque eu sabia o que andava a fazer; porque vivi situações de cumplicidade profissional inesquecíveis com colegas; porque senti que fazia diferença na vida dos meus alunos e porque vi o meu trabalho ser reconhecido por eles, e pelos meus colegas. Além disso, foram e são momentos decisivos, porque sinto que consegui estabelecer uma relação coerente e congruente entre o plano das ideias e o das ações. É verdade que algumas vezes fui um professor-missionário, mas não poderia ter sido o professor que julgo que fui e sou se o meu trabalho se explicasse, apenas, pelo missionarismo. Não é humanamente possível, além de que muitas vezes nos impede de pensar, em termos curriculares e pedagógicos, noutros modos de nos organizarmos para fazer o que desejamos fazer.

1. Não creio que se possa defender que os professores sejam vistos como guardiães da civilização. Essa é uma tarefa que diz respeito a todos os que participam na vida comum, num dado tempo e num dado espaço histórico-geográfico. A não ser assim, coloca-se em causa não só a própria civilização como o modo democrático de a vivenciar, dado que estaríamos perante dois tipos de riscos: a híper-responsabilização dos professores por uma tarefa que eles, só por si, não conseguem assegurar e a subsequente desresponsabilização de outros atores sociais. O que não significa que os professores não tenham um papel fundamental a assumir neste âmbito, tendo em conta que aquilo que se define como civilização obriga a reconhecer a importância de um trabalho que, em larga medida, visa contribuir para que as novas gerações se apropriem do legado cultural que as gerações anteriores colocaram ao seu dispor.

2. Não é possível pensar qualquer ação educativa dissociada da relação que se estabelece entre professores e alunos, ou entre alunos, com o propósito de promover a apropriação e a utilização, por parte dos alunos, de um legado culturalmente validado, em função do qual se contribui para o seu processo de formação pessoal e social e para as suas aprendizagens. Mais do que identificar qual a importância da relação pedagógica, importa valorizar os vínculos entre esta relação e o modo como se organiza o trabalho numa sala de aula ou numa escola. É que o sentir-se reconhecido, incluído e estimado não é um sentimento que seja independente da natureza das decisões curriculares, da organização dos espaços e dos tempos de aprendizagem, das estratégias de interlocução pedagógica e do modo como se definem as finalidades da avaliação e se avalia. A relação pedagógica não é algo que se acrescente a estas preocupações; pelo contrário, é algo que está incluído nessas decisões, determinando-as e sendo determinada por elas.

3. Não sei se é verdade, mas também não me preocupa. O que me preocupa é saber se os professores fazem tudo o que está ao seu alcance para que os seus alunos possam realizar tarefas e aprendizagens pessoal e culturalmente significativas. Por isso, é que discordo de que seja a existência ou não dos afetos, no seio das escolas, a questão prioritária que deveremos discutir. A discussão que necessitamos de fazer é como é que transitamos de um ensino que valoriza a ignorância e a incompetência dos alunos como a razão que justifica o trabalho dos professores, o que pressupõe um determinado tipo de relação pedagógica, para um ensino que, pelo contrário, valorize como ponto de partida aquilo que os alunos sabem e são enquanto condição que lhes permita virem a ser o que ainda não são e o que necessitam ser. Não é por isso, a existência ou não da relação pedagógica que importa discutir, mas o tipo de relação que necessitamos de promover – o que remete, sempre, para uma reflexão curricular, organizacional e pedagógica.

4. Essa é uma discussão dolorosa que teremos de fazer e que não cabe neste espaço. Direi apenas que esse estudo – que nos confronta com dados, de certo modo, assustadores – tem uma grande vulnerabilidade, quando circunscreve a denúncia do mal-estar docente às condições de trabalho e ignora as decisões curriculares e pedagógicas que os professores assumem quotidianamente, bem como o paradigma e os fundamentos das mesmas, como um fator que contribui igualmente para esse mal-estar.

5. São as pessoas e as suas atitudes... E, sobretudo, a congruência entre estas e os seus processos de ensino.

6. Sim, dado que pode constituir mais um contributo para potenciar a reflexão sobre o que é ser professor hoje e como se deve e pode ser professor no século XXI.

7. É preciso denunciar a nostalgia de um passado que, como professores, teremos de renegar ou de reconhecer que nunca existiu. É necessário, igualmente, combater a ideia de que o professor deve passar a ser um mediador ou facilitador. O que nós teremos de aprender a ser é, como defende Ariana Cosme, interlocutores qualificados, o que implica pensar a profissão em função de outros parâmetros, tal como a própria noção de relação pedagógica. Daí que todas as iniciativas que contribuam para isso poderão ser vitais para que a profissão docente seja o que todos necessitamos que ela seja.


  
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