Altino do Tojal, pseudónimo literário de Altino Martins da Costa, nasceu em 26 de julho de 1939, em Braga. Faleceu em Brunhais (Póvoa de Lanhoso), no passado 15 de julho, ou seja, à beira de fazer 79 anos. Ficou só muito novo, em circunstâncias difíceis. Seguiu-se um percurso de autodidata, de alguém que quis ser, única e simplesmente, escritor, embora, “por razões de pão mais vinho”, viesse a trabalhar em vários jornais: Jornal de Notícias (1966-73), O Século (1973-1977) e O Comércio do Porto (1982-1999). Tem 15 títulos editados, quase todos com várias reedições, nas áreas do conto, novela e romance. «Os Putos» é o seu livro emblemático. A primeira versão surge em 1964; a partir daí sucedem-se as edições (vai na 30a) e o livro não tem parado de engrossar – «Os Putos: contos da luz e das sombras» é um alentado volume de 690 páginas, com 145 histórias [Imprensa Nacional - Casa da Moeda]. “Bastaria este livro para que o seu autor não pudesse ser esquecido”, escreveu José Blanc de Portugal. Entretanto, a obra foi tendo adaptações várias no campo do teatro, da televisão e da banda desenhada. Altino do Tojal, o contador de histórias, “o solitário, o bicho do mato, o que jamais deu uma entrevista”, no seu dizer autobiográfico, acedeu, relutante, a vir a público quando o entrevistei em julho de 2001. Uma versão reduzida dessa longuíssima conversa foi publicada no jornal a Página n.º 106, em outubro 2001.
Para lá do que deixa transparecer nas suas obras, sabe-se pouco da sua bibliografia. Pouco mais que nada. Aliás eu nunca me importei muito, cultivo isso, de certo modo. Nunca procurei visibilidade pessoal. Aparecer? Não, isso nunca me preocupou muito e, em verdade lhe digo, desperdicei boas oportunidades. Nunca me preocupei muito em dar entrevistas, em aparecer nos jornais. Na televisão, nem uma única vez que fosse, apesar de terem adaptado alguns contos d’Os Putos na década de 70. Quando senti que se adensava o silêncio à minha volta, depressa me conformei. Se a minha obra vale alguma coisa, o futuro se encarregará de lhe prestar justiça. Se não vale nada, mais silêncio menos silêncio, acabará por ser justo até. O que sempre me importou foram os meus escritos, aquilo que eu pretendia deixar para a posteridade, se é que há alguma coisa que resista. Malgrado tal silêncio, tem havido um aplauso que só se ouve por dentro, que é a adesão do clube dos leitores, e isso funciona como um estímulo.
A última edição de «Os Putos», da IN-CM... Isso é o Panteão, é o fim.
... entrou no cânone. Eu estava a olhar para esta edição e pensava: «Os Putos» acabou. Terminou, dizia eu, mas depois já estava a escrever textos novos, outros contos que considero importantes. Não perdi ainda as esperanças noutra edição que reúna tudo, essa sim definitiva.
A sua obra anda muito à volta de «Os Putos». Não se consegue ver livre deles. Sim, tem razão.
Fale-me da sua infância. De toda a minha numerosíssima família, apenas duas pessoas me marcaram profundamente: a minha tia Emília e o meu avô. A minha tia Emília foi a pessoa que mais influência teve na minha vida. Era professora primária e levava-me com ela para as aldeolas onde dava aulas... Era um tempo sem eletricidade, sem comodidades... Acompanhei a minha tia nos meus cinco, seis anos. Não tinha ainda idade para andar oficialmente na escola, mas ela exigia de mim o mesmo que exigia aos alunos.
Teve uma excelente ‘pré-primária’. Ah, sim, sem dúvida, em todos os sentidos. Ir às segundas-feiras de Braga para essas aldeias era para mim, criança ávida de descoberta, uma aventura, um deslumbramento, uma verdadeira magia. Mal nos apeávamos da camioneta, lá estava uma infinidade de garotos à nossa espera. As garotinhas ofereciam à senhora professora ramos de flores silvestres e os rapazitos exibiam-se em gritaria heroica, descalços, limpando o monco à manga do casaco e deixando nela uma espécie de rasto de lesma...
Era então uma festa a chegada da professora. Sim, era uma festa. Nós por aqueles caminhitos rumo à escola, à velha escola, minha tia à frente com aquelas flores todas como uma santa num andor. Parecia uma galinha seguida pelos pintos. As miudinhas muito compenetradas e sorridentes, os rapazitos, com as sacolas escolares a bater-lhes no traseiro, perseguindo-se mutuamente, em berrarias de assustar índios...
Você conta, com graça, o percurso das professoras... Era sempre a mesma coisa. Viajavam numa camioneta incrível, focinhuda, que fazia um barulho medonho, largando fumo e poeirada e nas subidas gemia que metia dó. De aldeia em aldeia, a camioneta ia parando e em cada paragem apeava-se uma professora, com o respetivo bando à espera. Até que chegava a nossa vez. Durante a viagem, as professoras não faziam outra coisa que não fosse tagarelar: comentavam animadamente o filme romântico visto na véspera, falavam de namoricos, de moda, e também de rosto sombrio, das temidas visitas dos inspetores escolares. Ficavam em polvorosa quando recebiam uma dessas visitas.
Eram pessoas que durante a semana estavam nas aldeias onde lecionavam e só ao fim de semana regressavam a Braga? Sim. E como se conheciam, acontecia irem às vezes juntas ao cinema. Também eu ia ao cinema com a minha tia, já que por esses tempos não havia classificações etárias. Aos nove anos, por exemplo, vi o «Hamlet» numa admirável adaptação cinematográfica de Lawrence Olivier. Sabe que me impressionou muito esse filme? Foi o meu primeiro contacto com a morte, através da conhecida cena dos coveiros. Bom, acho que não foi o primeiro; o primeiro acontecera pouco antes, e mais impressivo, quando, no cemitério, me insinuei entre as pessoas, e assisti à exumação dos restos mortais de minha avó. Talvez por isso, a morte paira sobre muita da minha produção literária.
Hoje há a tendência para afastar as crianças da imagem da morte. Acha isso negativo? No meu caso, foi uma fonte de inspiração.
E a vida na aldeia, com a sua tia? A minha tinha era muito religiosa. À noite, tinha de gramar o terço. Orações, orações... Aquilo nunca mais acabava. Depois do rosário, propriamente dito, havia que rezar pelas almas dos parentes já falecidos, uma legião interminável, e depois em prol das almas mais abandonadas. Dava-me o sono, mas eu sabia que a seguir vinha o encantamento, o prémio pela minha paciência e colaboração: minha tia contava-me histórias antes de adormecermos. Contava-as como só ela sabia contar. Tinha um dom para contar histórias como nunca vi em mais ninguém.
Isso não fez com que deixasse de ser ateu... Olhe, acreditava mais depressa na existência dos gnomos. Não que, no fundo, acreditasse naquelas coisas, mas eu queria acreditar, precisava de acreditar. Tal como os adultos precisam de acreditar. Estou convencido que é uma necessidade.
E na escola, a sua tia era também uma contadora de histórias? Não, na escola não contava histórias e era, digamos, uma professora severa. Competente, mas severa. Os miúdos tinham de aprender a bem ou a mal. E ela às vezes desabafava, a chorar (como de resto digo nalguns dos meus contos): “é para ver se serão alguém, mas...”
Acreditava que a educação promovia as pessoas. Sim. A minha tia era, de facto, uma professora severa, embora bondosa; às segundas-feiras, levava lousas, cadernos e lápis que oferecia aos miuditos, os mais pobres dos pobres.
Você era o destinatário privilegiado desse dom que ela tinha. Verdade. À noite, na cama, com aquela escuridão e o vento a assobiar lá fora, contava-me histórias infantis como só ela sabia contar, com um poder sugestivo quase mágico. Tomemos como exemplo A Branca de Neve e os Sete Anões, quando a princesa é abandonada na floresta. A minha tia ‘colocava-me’ no local, falava de medos, de ameaças, de rumores sinistros. Usando onomatopeias, introduzia em mim o bracejar lamentoso do arvoredo ao luar, à hora em que pia o mocho. Tinha uma capacidade invulgar para me pôr no local da ação, com todos os sentidos alerta.
A sua tia teve muita importância no desenvolvimento da sua fantasia e imaginação? Extrema importância. Depois das orações, ela transfigurava-se, no contar das histórias... Isso aparece no último conto de «Os Putos» de 2001, chamado ‘Fim’: é o derradeiro encontro do Altino com a sua tia. Uma visita que fiz, de facto, ao cemitério onde jaz a minha tia e onde converso com ela.
Foi sua professora durante quanto tempo? Oficialmente, nunca o foi, porque eu não tinha idade escolar quando a acompanhava à aldeia. Depois houve um conflito familiar e passei a viver com o meu avô, então professor reformado. O meu avô perdera-se de amores pela criada, as minhas tias disseram-lhe que era uma afronta à memória da mamã e o velho, indignado, pegou na bengala, e saiu de casa levando-me consigo. Começava outro capítulo da minha vida. O meu avô era muito avarento, mas criatura singular – o elemento mais ilustre de uma dinastia de campónios. Em miúdo, tinha dado provas de possuir uns miolos mais privilegiados do que o normal e um tio dele, que era padre, pô-lo a estudar. A trabalhar numa farmácia e a estudar. A verdade é que conseguiu chegar a mestre-escola, como se dizia naquele tempo. Era trabalhador, uma pessoa extremamente ativa, e pôs os filhos a estudar.
Nunca conta histórias do seu avô relacionadas com a escola e com a profissão dele... Não e por uma razão bem simples: lembro-me dele quando já era professor reformado. Era um velhote muito avarento, mas com um agradável toque de loucura. O meu avô passava uns dias de férias na quinta do irmão, que distava 3 ou 4 km da citânia de Briteiros. Levava-me amiúde até lá e divagava horas esquecidas acerca do povo rude que ali vivera, dos costumes e das lendas. O meu avô foi, de certo modo, o responsável pelo meu interesse pela arqueologia – que mais tarde, já adulto, me levaria a visitar tudo quanto é ruína, no Egito, na Grécia, por sítios desses. A minha tia contava-me histórias mágicas e o meu avô falava-me de calhaus, construções, muralhas antigas dos povos que lá tinham passado. Sempre gostei muito de arqueologia e o meu avô foi, de certo modo, o responsável por isso.
Daí aquele cruzeiro no Nilo, descrito em «Ruínas e Gente» (1991), não é assim? O meu grande desejo era ir ao Egito faraónico. Já antes eu tentara fazer essa viagem, bem antes, nos fins da adolescência e começos da adultez. Minha tia Emília morrera há muito tempo, de cancro. Esteve em tratamentos no Porto e eu fazia-lhe companhia; estávamos hospedados numa pensão. E o meu avô morrera também, de velhice. Desapareceram esses dois esteios. Vi-me só. Era novo, tinha a cabeça cheia de sonhos, começava a escrever. Não tinha onde cair morto, mas decidi ir ao Egito. Findavam os anos 50, eu tinha 20. Era o tempo da grande emigração. Enfiei as mãos nos bolsos e atravessei a fronteira, por Lindoso, descontraído, a assobiar, sem passaporte, sem dinheiro, mas com a cabeça fervilhante de projetos literários. Propunha-me atravessar uma catrefada de países, trabalhando aqui e acolá, até chegar ao Egito, onde faria umas escavações, desenterraria uns tesouros, para depois regressar cheio de fama...
Era a continuação das histórias... De certo modo. Mas a minha aventura correu mal. Fui de comboio... Um fulano chegou à minha beira e “o bilhete?” Não tenho. Passaporte? Os nossos amigos espanhóis não estavam com meias medidas – fui detido e devolveram-me à procedência, com direito a algemas e tudo. Entre as prisões espanholas que conheci (com permanência de alguns dias em cada uma delas) avulta a de Valladolid, porque o meu carcereiro achou que devia levantar-me a moral, revelando que na cela pegada à minha, tinha estado enclausurado Cristóvão Colombo. Foi realmente na prisão de Salamanca e Valladolid que eu amadureci. Curiosamente, uma experiência dessas, que devia ser traumatizante, não o foi para mim. A prisão de Palência deixou-me recordações imorredoiras. Conheci lá pessoas fascinantes. Era uma prisão, basicamente, para presos políticos, entre os quais muitos professores primários. Nós tínhamos direito a uma hora de recreio, acho eu. E foi aí que conheci esses presos políticos. Ao domingo comia-se arroz à valenciana e havia uma distribuição de maços de tabaco. Eu não fumava e entregava-o ao parceiro.
Nesse tempo ainda não fumava? Não, nessa altura ainda não fumava.
Foi tardio esse seu gosto pelo cachimbo? O cachimbo vem mais tarde. Comecei a fumar aos 27 anos.
Más recordações dessa experiência prisional? Muito pelo contrário. É curioso, tive saudades das prisões por onde passei. Recordações excelentes, ótimo material. Não se esqueça de que eu era um contador de histórias... Apetecia-me ficar lá o resto da vida. Quando disseram que tinha de me vir embora, fiquei desolado e notei que eles também ficaram um bocado tristes. Regressei à base, fui entregue à PIDE, na fronteira. Ainda passei uma noite no edifício da PIDE. Depois fui despachado para Ponte da Barca. Porque tinha sido lá que eu tinha transposto a fronteira sem documentos.
Em «A Homenagem» (1974) diz, a certo passo: “Felizmente trago sempre esferográfica em tudo quanto é bolso”. Está a ver? Mesmo no bolso do pijama. Mesmo na prisão arranjava uma caneta para escrever.
Escrevia logo? Ia tomando notas. Sempre que podia tomava notas como pontos de partida para contos, para não me esquecer. Essas notas foram importantíssimas para, mais tarde, escrever o conto ‘Ester’ (um dos mais fortes que escrevi), baseado numa dessas experiências. Tanto trabalho estando à banca, a escrever, como indo pela rua, a amadurecer a atividade literária.
E depois da emigração fracassada? Regressei a Braga, onde o diretor da biblioteca pública, Egídio Guimarães, me contratou para fazer uns pequenos serviços, a troco de uma modestíssima quantia que só dava para me hospedar numa espelunca imunda, abaixo de qualquer classificação, frequentada por pobres diabos sem eira nem beira. Situação estranha, mas extraordinariamente enriquecedora, pelo contraste, pelo jogo alternante de sombras e luz. Por um lado, a espelunca, com as suas misérias; por outro, a biblioteca pública, aquela catedral do saber, com milhares de livros à minha disposição. Dei sequência ao caminho aberto pela minha tia Emília, cultivei-me ardentemente, como autodidata que era.
Com a escrita sempre presente... Sim, vivia exclusivamente para a literatura. A escrita esteve sempre no horizonte. Para mim era a única coisa que contava.
Nunca pensou noutra coisa? Nunca, apenas em escrever. Nascera para escrever, nada mais interessava. Na biblioteca, convivia com pessoas cultas, entre quilómetros de calhamaços fascinantes. E depois havia o programa sórdido da espelunca, com a sombria malta da valeta, os tristes, os explorados, os revoltados, essa gente... Num lado, lampadários e conversa elevada; no outro, pragas e humilhação. Um escritor não poderia desejar melhor. Para mais, o diretor da biblioteca apreciava as coisas que eu escrevia e não descansou enquanto não as publiquei em livro. Estava bem mais impaciente que eu. Custa a crer, mas garanto que eu não tinha ansiedade nenhuma em publicar aquilo que seria «Os Putos». Era capaz de estar dias e noites virado a uma só página. Mas enquanto não considerasse que ela estava em condições de ser apresentado ao doutor Egídio Guimarães...
Foi o seu patrono. Exato. Foi ele que mexeu as suas influências para a primeira edição na Pax. Dizia-me que eu ainda iria ter um ‘boca de sapo’ e uma secretária. Enganou-se, mas enfim... O livro teve um escoamento penoso, o que é compreensível. Foi uma edição de mil exemplares. Para uma cidade de província, pequena, com pouca gente a ler... Quem comprou o livro foram os amigos e a malta nova, estudantes endinheirados.
Ele funcionava também como crítico? Como crítico, consciencioso e benévolo. Tal como acontecera com a minha tia Emília e o meu avô, a sua morte abriu em mim um doloroso vazio que ainda está por preencher. Era um intelectual de fino trato, com cavalheirismos de antanho, amigo discreto, mas sólido, um espírito nobre, embaixador ideal para interceder junto do Eterno pela mesquinha humanidade. Também intercedia por mim junto das personagens ‘de peso’ que o visitavam na biblioteca, mostrando-lhes o meu livro «Sardinhas e Lua» (1964), acabado de publicar e exagerando-lhe talvez os méritos. Foi em boa parte graças a ele que estabeleci contactos com o Jornal de Notícias e comecei a experiência jornalística, já que a Literatura, como disse Somerset Maugham, poderá ser uma vistosa bengala, mas não é lá grande muleta. Trabalhei sete anos no Jornal de Notícias e, ao fim desse tempo, despediram-me.
Porquê? Porque a já extinta editora Prelo acabara de publicar «Os Putos», título definitivo do «Sardinhas e Lua», em edição bastante aumentada. Entre os novos contos havia dois – “O Campo de Judite” e “O Gancho” – que desagradaram aos omnipotentes senhores do JN. Despediram-me sem ao menos me ouvirem. Foi em maio de 1973, a menos de um ano da Revolução dos Cravos...
Mas «Os Putos» tiveram êxito. Um êxito que contribuiu para me abrirem as portas do velho O Século, em Lisboa.
Trabalhou lá muito tempo? Até o jornal fechar. Aí não foi despedimento; acabou, pura e simplesmente.
Regressou então ao Porto? Não. Permaneci em Lisboa. «Os Putos» estavam a ter uma aceitação tremenda, as reedições sucediam-se e os editores, por esse tempo, portavam-se de forma razoavelmente satisfatória. Cheguei a acalentar o sonho de viver dos meus livros, de viver da Literatura. Ilusão, pura ilusão.
Reatou a atividade jornalística? Sim, trabalhei mais dezassete anos n’O Comércio do Porto. Antes disso, porém, fiz umas viagens, uma delas a Macau, que me proporcionou material para outro volume de contos, as «Histórias de Macau».
Tantos anos no jornalismo e, no entanto, não se considera um jornalista... Nunca me senti um deles. Apesar de, em alguns dos meus contos, eu próprio me apresentar como jornalista.
Trabalhava nos jornais para assegurar a subsistência, mas não tinha amor à profissão? Até poderia ser amor. Sei lá, se calhar, até sou capaz de gostar, dentro de certos parâmetros. Por exemplo, quando estava no JN gostei de ter ido para Moçambique escrever sobre a barragem de Cahora-Bassa. E lá redigi uma série de artigos que me deram muito prazer. Gostei, mas não foram muitas as experiências.
Saía muito da redação do jornal? Saí muito para entrevistas. Era-me fácil construir diálogos. Só que eu funciono mais como espectador do que ator, gosto de ver as coisas à distância, discretamente, sem intervir mesmo.
E a experiência em Macau? É um livro um bocado doloroso, embora com um certo tom irónico; a tristeza está lá. Tenho razões para isso. Só de pensar que deixei ficar lá uma filha, já pode calcular. E é curioso, até tinha boas perspetivas em Macau. Nesse tempo, o governador era o Garcia Leandro. Um dos secretários do Governador aconselhou-me a oferecer-lhe um dos exemplares de «Histórias de Macau», e assim fiz, um bocado constrangido. Dá a ideia que se vai tentar obter qualquer coisa em troca; não me sentia lá muito bem e o homem apanhou-me friamente, poucas palavras. Dei-lhe a entender que gostaria de trabalhar em Macau e, quase envergonhado, deixei-lhe o livro e saí sem grandes esperanças. Estava a atravessar um tempo difícil em Macau, a minha relação com a minha companheira, em vez de melhorar estava a piorar e eu sentia-me mal, infeliz, triste, miserável mesmo. Mas tinha lá a minha filhita e não queria separar-me dela.
Que idade tem a filha? 25 anos. Isso é outra história, preferia não me alongar nestas coisas.
Acha que «Histórias de Macau» (1987) pode ser considerado um romance? Os críticos que escreveram sobre o livro consideram-no um romance, deliberadamente. Isso não aconteceu por acaso, a intenção foi mesmo essa.
O Altino é, fundamentalmente, um contista. Sim, embora goste de romances.
E, por vezes, anda muito perto da literatura infantil... Eu sei lá! Acho que é um desentranhamento juvenil, leve, entusiástico, colorido, mágico, não é? Às vezes sinto essa necessidade.
Apesar de haver críticos que falam na “força poética” dos seus textos, num “encontro salutar e raro entre a prosa e a poesia”. A minha modéstia também não é assim tão exagerada que me impeça de dizer que sim, os meus contos estão repassados de algo que se pode considerar poesia. Acho que sim. E consegui isso sem qualquer tipo de esforço, era natural, porque tinha cá o adubo.
Nunca publicou poesia? Sou um prosador.
Faz parte dos escritores que já sentiu a angústia perante a folha de papel em branco? Algumas vezes senti essa angústia, e de que maneira! Aquela branca é terrível. Dizem os escritores, regra geral, e com alguma razão, que não se deve esperar pela inspiração. O autor deve sentar-se e trabalhar. Eu é que não consegui isso. Só me sento a escrever quando tenho vontade. Na altura, o texto sai, e é nesses períodos que eu sinto aquela angústia; o recurso é levantar-me, andar de um lado para o outro, trabalhando mentalmente e volto a sentar-me. Então, à noite, acontece amiúde, estar na cama, no escuro, e depois levanto-me, acendo o candeeiro uma, duas, três... seis vezes...
Vai para a máquina de escrever? Não. Qual máquina de escrever? Nem pense. Máquina de escrever é só já depois do texto mais ou menos elaborado. Só que rasgo esse texto para aí trinta vezes, porque há aquela ânsia de perfeição, tentar dizer o máximo no mínimo de palavras, sem ser telegráfico, é claro, tratar de transmitir emoções, dar o colorido a uma descrição... Mas nada de prolongar na descrição...
Na sua obra é muito difícil distinguir a ficção da realidade. Sim, é...
Os personagens de várias das suas histórias – Benjamim, Gnomo-Esgueiriço, Espantalho-Felá, João, entre outros – são ou não alter-egos? A alma gémea sou eu.
Há um texto em «A Colina dos Espantalhos Sonhadores» (1975) que descreve uma professora a corrigir, a vermelho, as provas dos alunos, numa viagem de elétrico. Viu-a de facto? Sim, sim, foi verdade. Mas isso valeu-me uma carta terrível de uma leitora d’O Século. Esse conto tinha saído no jornal, aliás como saíram outros na altura. A reação da senhora tinha sido tão violenta, que o chefe de redação, o Mário Zambujal, deu-me uma ‘desanca’ das antigas! Dizia a tal leitora que eu não fazia ideia do que era a vida de uma mulher, ter que fazer a lida da casa, dar aulas... Nem ela calculava como eu conhecia bem o apostolado de uma professora...
Nesse mesmo romance diz: “O neorrealismo faz-me vómitos”. E mais à frente, “Viva o realismo fantástico em vias de nascer entre nós!” De certo modo, continuo a pensar e a sentir assim. Bem, eu punha os olhos num texto neorrealista, duro, cruel e mais nada, acabava invariavelmente por desviá-los. Se se der ao trabalho de pesquisar, verá que até nos meus contos mais graníticos há suavidades transfiguradoras, como as neblinas no cume das montanhas.
Foi a magia da sua tia Emília que o salvou de cair no neorrealismo. Contribuiu para isso, não tenho dúvida.
Não tem muito boa ideia da nossa literatura. Não, confesso que não tenho.
A sua relação com as editoras é má. E com os escritores? É capaz de ser pior. As vaidadezinhas, o vale tudo para se conseguir... Eu não suporto. Há um de que guardo boas recordações, embora não tenha amizade profunda com ele. É o Urbano Tavares Rodrigues. Respeito-o e ele respeita-me. Mas tirando esse...
Sempre gostou de ser escritor, mas não tem ligações à Associação de Escritores. Não. Tive sempre dificuldade em integrar-me em equipas.
Porquê? Pelo tal individualismo que refere reiteradamente? Ou porque isso não lhe traz vantagem nenhuma no campo literário? É claro que só eu é que perco. Todos nós sabemos que é através da união com os outros, da união de interesses, pelo menos, que se chega a qualquer coisa. Eu não estou muito divulgado lá fora, precisamente porque me meto na concha e não faço parte daquelas capelinhas.
Não está ligado a qualquer partido, mas parece-me um homem de esquerda. Sim. Não é uma leitura mal feita; tenho preocupações sociais.
Altino, gostava que falasse um pouco sobre a escola. Talvez fosse melhor você ler o último conto de «Os Putos». Descreve a escola tal como a conheci em miúdo, aquela velha sala a cair de podre, com os seus cheiros, as suas vozes, as paredes forradas a mapas e, por detrás da secretária da professora, os retratos do marechal Carmona e de Salazar, com Jesus crucificado de permeio...
Além da sua tia Emília, há outras professoras na sua obra, como a Domicilia do romance «Viagem a Ver o que Dá» (1983). Tomei como modelo uma professora mazinha que tive... Só amansava à conta de uns bons presentes familiares.
A escola oficial que frequentou era na cidade de Braga? Nasci em Braga e vivi lá até aos 27 anos. Comecei numa escola bracarense, que já não existe, e acabei na escola da Sé.
Fez lá os quatro anos da escola primária? Sim. Quando entrei, já sabia ler, levava aquela bagagem toda que os outros não tinham (vantagens da tal ‘pré-primária’ com a minha tia); só eu, o menino Arriscado, o menino Bernardino, e mais um ou outro privilegiado; os outros miúdos partiam com tremendas desvantagens. Mas confesso, honestamente, acho que fui sempre mau aluno. Passávamos a aula com livrinhos de histórias nos joelhos, lendo às ocultas o «Mundo de Aventuras», que começara a sair naquele tempo. Gostava de escrever e, portanto, preferia as redações. Também não desgostava da Geografia, apesar de termos que saber os ramais, os caminhos de ferros, os afluentes, as serras – tudo ali cantadinho na ponta da língua.
Gostou do tempo em que frequentou a escola? Nem tudo foi bonito, pelo que descreve em certas situações... Se se refere aos castigos, vi dar muita pancada nas escolas. Eu próprio terei apanhado a minha reguadazita, mas a memória esfuma-se e não estou lá muito certo. Creio que tive azar com as professoras, eram severas, tal como a minha tia, mas, ao contrário dela, que se esforçava para que os miúdos soubessem, as outras chegavam à escola com ar de mártires, uma cara que espelhava pés cansados... De certo modo, até as tento perceber. Afinal de contas, eu conheci a minha tia no apogeu, ainda jovem, entusiasta. Mas reconheço que deve ser muito difícil, para uma professora aguentar aqueles níveis de entusiasmo, de exigência, aos quarenta, cinquenta, sessenta anos... A minha escola, especialmente na aldeia, a dos tempos pré-primários, a da minha tia Emília, era algo de mágico. Ir para lá era uma expedição mágica.
Diferente da escola dos nossos dias? Não conheço esta escola. Não faço ideia. Suponho que os processos didáticos serão outros, necessariamente, bem diferentes. Dantes tínhamos a lousa de ardósia, o giz e toca a andar, podia-se bater. Agora acho que tudo isso está mudado, ultrapassado. Ai do professor que se atreva a puxar a orelha a um miúdo...
Tem sido convidado, enquanto escritor, a falar nas escolas? Poucas vezes, e ainda bem. Gosto tanto de falar em público como de dar entrevistas.
E está bem com o país? Gosto, gosto muito do meu país. De certo modo, não me trata mal. Apesar de tudo, vou tendo os meus leitores.
Deram-lhe o nome de uma rua em Beirã, Portalegre. E da sua terra – Braga – esperava uma homenagem? Braga nunca me ligou a ponta dum chavelho. Santos da casa... Braga não presta homenagens a ateus, convenhamos. Aqui há anos atribuíram umas medalhas a dois escritores, de mim não se lembraram, também não me preocupou. Nunca tive grandes necessidades de notoriedade. Gosto que a minha obra seja lida. Ah! Sim, gosto. Quer eu apareça ou não apareça...
Luís Souta (entrevista e fotografias)
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