Segundo a revista The Pathologist, Fátima Carneiro é a patologista mais influente do mundo. A revista inglesa questionou patologistas de todo o mundo e a investigadora portuguesa foi destacada pela sua capacidade enquanto patologista, perita na sua especialidade, e docente. Professora catedrática da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, é diretora do serviço de Anatomia Patológica do Centro Hospitalar São João e investigadora no Ipatimup - Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto. É neste tripé de atividades (docente, clínica e de investigação) que assenta a vida profissional de Fátima Carneiro, que recebeu a PÁGINA no Hospital de São João. Fala com paixão do seu trabalho, deste tripé “quase perfeito”, do ensino, que considera uma atividade “desafiante”, do facto de estar prestes a ser avó (duas vezes) e de África, onde nasceu.
Como recebeu a notícia de ter sido considerada a patologista mais influente do mundo? Confesso que recebi com satisfação, naturalmente, mas também com surpresa. Estava a trabalhar normalmente, aqui no hospital, a ver casos ao microscópio, verifiquei o email e, de repente, apareceu-me aquela notícia. Sabia que estava a decorrer o processo através da revista The Pathologist, que apelou aos assinantes e leitores para que votassem nos patologistas mais influentes. Em 2015, o professor [Manuel] Sobrinho Simões foi eleito o mais influente e eles estavam a repetir esse processo. Eu tinha estado na lista dos 100, porque a revista identifica 100 patologistas em todo o mundo, homens e mulheres, que reúnem a votação dos seus pares, e depois, dentro destes, dá destaque particular ao primeiro, segundo e terceiro classificados. Portanto, sabia que estava o processo em curso, mas não sabia as suas consequências, nem a dimensão. Foi com surpresa, sim, e com satisfação. Uma satisfação muito mais do que pessoal, porque, apesar de tudo, isto traduz que a Anatomia Patológica portuguesa tem projeção internacional. As pessoas que ficaram nos três primeiros lugares são mulheres, o que também não é muito habitual, mulheres com uma enorme projeção pessoal e profissional. A segunda classificada [Elizabeth Montgomery] é dos Estados Unidos e é uma superespecialista em patologia gastrointestinal; e a terceira classificada [Jo Martin] é presidente do Royal College of Pathologists, do Reino Unido. Portanto, isto traduz o reconhecimento internacional da Anatomia Patológica portuguesa, mas traduz também a articulação da Patologia portuguesa com os outros universos profissionais e científicos.
Mostra que a Ciência portuguesa é bem vista lá fora... Não tenho dúvida nenhuma sobre isso. Na área da Patologia há uma projeção internacional que é muito importante nos diversos domínios: no do cancro da tiroide, o professor Sobrinho Simões é líder na área; na patologia digestiva, várias pessoas participam ativamente, publicam e são reconhecidas, como as professoras Paula Chaves e Paula Borralho; também na uropatologia, o professor Rui Henrique é um nome conhecido nos fóruns internacionais... E poderia citar muitos outros domínios em que há uma visibilidade grande. O que acontece neste particular é que eu, além da atividade meramente profissional e científica, tive uma trajetória através de uma estrutura que constituiu uma câmara de amplificação, que é a Sociedade Europeia de Patologia, onde tenho vindo a desempenhar cargos desde há muito tempo, tendo sido presidente da sociedade, depois de ter ficado como coordenadora dos grupos de trabalho e agora de ser presidente do Advisory Board, um corpo consultivo onde estão representados os presidentes de todas as sociedades de Anatomia Patológica da Europa. É uma trajetória que nos expõe a um fórum amplo de pessoas com quem interatuamos.
É o resultado de muitos anos de trabalho. O que nos pode dizer do seu trabalho? Num dia destes, em que estava muito cansada, um amigo disse-me uma expressão que diz tudo e que acho que resume a resposta à sua pergunta: “mas tu fazes o que gostas.” E acho que é essa a grande marca, é uma pessoa ter a felicidade de fazer o que gosta, no sítio de que gosta, com as interações de que gosta. E isso não só rentabiliza aquilo que constitui a atividade profissional, científica e docente, como torna um motivo de satisfação todos os dias, poder encarar cada dia como mais um desafio e não propriamente como mais uma maçada para ultrapassar. Acho que essa é a minha grande felicidade, é gostar muito do que faço. Gosto muito de fazer diagnóstico e tenho bem presente a responsabilidade que recai sobre nós, patologistas, porque, apesar de tudo, damos uma espécie de um veredicto que, no fundo, vai orientar o tratamento dos doentes... A interdisciplinaridade é uma das facetas da minha atividade de que gosto muito. Há uma outra faceta da Anatomia Patológica que, para mim, foi muito determinante na escolha: a liberdade de, sem deixar de fazer as coisas que fazem parte das tarefas de que temos que tomar conta, poder organizá-las de forma a intercalar e a encaixar melhor outras tarefas. Porque eu também sou professora e gosto muito de ser professora. Quando as pessoas têm atividade docente têm uma ocupação que vai ter impacto nas atividades de diagnóstico. Não fosse realmente termos esta liberdade... Outra vertente que, para mim, é apaixonante é encaixar neste puzzle as atividades de investigação. No fundo, o que estou a descrever é o tripé em que assenta a minha atividade: clínica, docente e de investigação, que é – até tenho medo de dizer esta palavra – quase perfeito.
E como é que se gere isto tudo? Com muita ginástica. Com bastantes horas no dia, a trabalhar dias inteiros e às vezes noites.
Uma das áreas por que mais se interessa é a área do cancro de estômago. Há algum motivo? Em termos de investigação o meu principal interesse científico é o estudo mais aprofundado do cancro de estômago. Isto foi, no fundo, fruto de uma orientação do professor Sobrinho Simões, há muito tempo. Quando vim para cá, comecei a trabalhar em cancro da tiroide e, algum tempo depois, o professor reordenou as linhas de investigação, contemplando o cancro de estômago como sendo prioritário, porque é uma neoplasia muito prevalente em Portugal. E este foi o caminho que eu segui, com muito gosto. Mais recentemente, dedico-me a formas de cancro hereditárias, aquelas em que está identificado um defeito genético que pode ser transmitido nas famílias. Se nós – e agora falo em grupos multidisciplinares – identificarmos famílias com um determinado tipo de cancro hereditário, isto oferece a possibilidade de, através da identificação do gene, procurar outros elementos da família, que, embora ainda sem doença clinicamente diagnosticada, sejam portadores do mesmo defeito genético. E a esses podem ser oferecidas medidas de acompanhamento mais apertado, de vigilância, e eventualmente cirurgias profiláticas que venham a defende-los da possibilidade de virem a desenvolver cancro. Em termos do cancro, há duas formas de doença hereditária que afetam fundamentalmente o estômago e temos trabalhado muito nesse domínio.
Porque é que ainda hoje se fala muito e ainda mais da morte por cancro? Vamos deixar o cancro hereditário para passar a falar do cancro esporádico. O modelo do cancro de estômago é um modelo excelente para explicar às pessoas e as pessoas perceberem bem. Em Portugal há muito cancro de estômago. Têm sido muito discutidas as causas. Não havendo um rastreio, o diagnóstico é feito em face dos sintomas que os doentes sentem e comunicam ao médico. Portanto, muitas vezes, os diagnósticos são feitos em fases em que o cancro já está mais avançado, e nessa altura o prognóstico é pior do que se as lesões forem diagnosticadas precocemente e se forem removidas por endoscopia ou cirurgia, onde essas intervenções podem ser curativas. No cancro do estômago, cerca de 90% dos casos são devidos a causas ambientais. Por exemplo, a dieta desequilibrada que os portugueses continuam a ter, utilizando muitos enchidos, excesso de sal, talvez ainda uma dieta insuficientemente rica em legumes, vegetais e frutas... Um desequilíbrio que em algumas famílias se concentra. Associado, por exemplo, à infeção por helicobacter pylori, aquela bactéria que se sabe hoje que pode causar cancro de estômago, e que também há bastante em Portugal. Estes são os tais fatores ambientais. E as famílias têm uma suscetibilidade genética. Por vezes, dentro das famílias, pode haver suscetibilidades particulares que se concentram num ambiente, que pode ser agressivo, e que faz com que, nessas famílias, possa haver uma agregação de cancro. Então, cerca de 90% do cancro do estômago é esporádico, pode acontecer a qualquer um de nós; em cerca de 10% dos casos, há agregação de algumas formas de cancro dentro da família, mas não se identifica o gene único que o causou; e depois, uma percentagem muito mais pequena, de um a 3%, são formas de cancro que existem nas famílias, porque é hereditário.
Relativamente aos tratamentos. Os resultados não são melhores? Há duas componentes. E agora vamos deixar o modelo do cancro do estômago para passarmos para o cancro em geral. Por um lado, os tratamentos disponíveis são de maior eficácia, são mais dirigidos, têm talvez menos efeitos colaterais, afetam menos o bem-estar dos indivíduos e, portanto, são mais eficazes, permitindo sobrevidas mais longas. A outra componente é que a esperança de vida das populações está a aumentar e, portanto, aumenta também a oportunidade de as pessoas virem a ter cancro. E não se deve encarar isso como sendo um drama; é um preço a pagar pela longevidade. A longevidade tem, pelo menos, três preços a pagar: as doenças demenciais, as doenças do sistema cardiovascular – os vasos envelhecem, o coração envelhece... – e, no fundo, os subprodutos das alterações que se vão acumulando nos genes ao longo do tempo e que podem condicionar o aparecimento de um cancro.
Fala disto com uma paixão... Como é que a Ciência e a Medicina entraram na sua vida? A Medicina é uma daquelas maluqueiras que as crianças têm... [olhando para o quadro, mostra-nos as suas “crianças” e conta que os dois filhos, quando pequenos, a acompanhavam no hospital e “divertiam-se imenso, faziam desenhos”; contou, ainda, que os dois vão ser pai e mãe, muito em breve, e as mudanças avizinham-se] As pessoas acham que a família modifica muito os nossos hábitos, a nossa disponibilidade. É óbvio que a gente tem de se adaptar à circunstância de ter uma família e a família tem de estar em primeiro lugar, porque se não, está tudo maluco. Mas eles integraram-se sempre de uma maneira perfeita e harmónica, porque era natural, tiravam partido e divertiam-se, nunca interferiram de uma forma muito substantiva naquilo que eu quis fazer.
Isso vai ao encontro de uma outra questão: como é ser Mulher na Ciência? Tive um episódio que demonstra bem que há preços a pagar, só que os preços não precisam de ser altos, nem catastróficos. Quando o meu filho mais velho tinha dez meses foi comigo para a Bélgica, porque eu ia fazer um estágio lá. Os meus pais foram também e estiveram lá connosco quase dois meses, só porque eu não podia conceber que ia passar esse tempo sem o meu bebé. Mais tarde, já a minha filha mais nova tinha nascido, tive o desejo de fazer um doutoramento. Ia para Inglaterra e nessa altura achei que os meus pais poderiam ter disponibilidade para fazer uma coisa parecida. Isto porque o meu marido era engenheiro civil e tinha uma vida muito fora do Porto. Os meus pais disseram-me que nem ficavam com as crianças, nem a minha mãe ia comigo para Inglaterra. Eu achei que tinha chegado o fim, mas no fundo o ponto deles era isto: uma pessoa tem filhos, eles são a primeira prioridade. Um bebé de um ano e uma criança de três precisam muito da mãe. Eles entendiam que se as crianças ficassem cá era um afastamento excessivo da mãe, já que o pai tinha uma vida também muito ativa. Para os meus pais, que sempre me deram apoio em tudo, ficarem dois anos em Inglaterra era uma coisa que não fazia sentido. É uma catástrofe? É um choque? É um choque, mas não é dramático. Não fui fazer o doutoramento em Inglaterra, fiz em Portugal. Um doutoramento como os outros, com menos saídas. Foi muito tradição, aqui, no nosso departamento, dar às pessoas a oportunidade de se exporem a ambientes internacionais e isto é muito enriquecedor. Eu não pude fazer mais do que pequenos períodos, porque realmente era mãe de duas crianças que precisavam de mim.
Voltando atrás, como é que chegou à Ciência e à Medicina? A Medicina foi a maluqueira de sempre. Quanto à Anatomia Patológica, eu tinha acabado o curso... Portanto, eu só fiz cá metade do curso, porque a primeira parte tinha feito em Luanda – porque eu nasci em África e sou uma africana apaixonada... O professor de Biologia convidou-me para ir dar aulas de Biologia Celular. Era uma pessoa que eu respeitava muito. Eu não estava preparada para aquela pergunta e disse: “acho isto um bocado parado para mim”. [risos] Na realidade, nessa altura, tinha muito claro que queria ter uma atividade clínica. Durante o curso achei que ia ser pediatra, e já tinha dado aulas em Luanda, e adorava dar aulas, e tinha aquele enlevo de poder juntar e fazer investigação, que decorre da atividade se for bem dirigida. Ele disse-me, com um ar espantado, que isso era Anatomia Patológica. Foi assim que eu vim para a Anatomia Patológica.
Também é professora. Que papel tem a educação na sua vida? Tem um papel importantíssimo. Acho que os professores têm um papel importantíssimo. No fundo, a influência que se pode ter junto dos estudantes passa pela atitude que se tem, e a primeira coisa é respeitá-los. Isso é para mim uma condição básica. Aqui, o nosso grupo gosta muito da atividade docente. Para nós, é um gosto preparar aulas, dar aulas; não é propriamente qualquer coisa que nós vemos como uma atividade não desejada. E o ensino é muito desafiante, porque eu acho que a melhor maneira de aprender é ter de ensinar. Ao nível em que nós estamos, na pós-graduação, ensinar em termos de Anatomia Patológica ou ensinar estudantes de Medicina obriga a uma atualização permanente. E quem faz ensino, para mim, tem uma formação mais completa do que quem não faz. Explicar aos outros é uma coisa que exige amadurecimento, identificação do que é prioritário, no fundo é preciso saber muito para se conseguir transmitir mensagens simples e não palestras fastidiosas ou demasiado longas.
Que diagnóstico faz da Ciência e da investigação em Portugal? É um diagnóstico difícil de traçar, porque tem mudado ao longo do tempo. Portanto, podia dizer que já teve melhores dias. Houve um período áureo, que correspondeu ao período do professor Mariano Gago, enquanto ministro da Ciência e Tecnologia, no qual o governo consciencializou a importância desse desenvolvimento e em que houve investimento. O investimento viu-se. Houve institutos de investigação que se criaram e que estão aí. Foi uma opção estratégica orientada por alguém que era conhecedor, que era cientista, que sabia do que estava a falar e que tinha uma missão e uma visão que teve a felicidade de conseguir implementar e ver crescer. Esse foi um período realmente glorioso e contribuiu de uma forma determinante para que se criassem infraestruturas, para que se recrutassem investigadores, para que se aumentasse a publicação científica. O que tem acontecido desde então é que tem havido ciclos de financiamento que não são estáveis e são imprevisíveis. E isso cria instabilidade, cria angústia, cria alguma preocupação com a estabilização de equipas, por exemplo. Ao longo dos últimos anos temos sentido essa instabilidade, com o lançamento de projetos a demorarem muito tempo, com avaliações também a demorarem muito tempo, com dificuldade em prever o futuro.
Falta um novo investimento... Um investimento responsável. A Fundação para a Ciência e Tecnologia está a concretizar aquilo que é uma determinação ministerial: quando o governo faz um investimento em Ciência tem o direito, para não dizer obrigação, de avaliar os frutos desse investimento. Foi investido x para os objetivos a, b, c e d e vamos ver in loco se estes objetivos foram alcançados: porque não, porque sim, se se justifica manter...
E é importante essa avaliação? A motivação de parte do desenvolvimento advém do conhecimento antecipado de que vai haver avaliação dos resultados. Quem diz isto para o investimento em Ciência, diz para o investimento no que quer que seja, por exemplo, até para os próprios estudantes. Embora, no íntimo, todos nós gostássemos de aprender por aprender, a principal motivação de um estudante é a preparação para a avaliação. E é por isso que a avaliação tem uma importância capital. Não é propriamente acumular perguntas, é programar a avaliação de forma a que possa realmente avaliar o conhecimento na sua verdadeira dimensão, que é a sua interiorização, o sentido crítico sobre ele e para mim, fundamentalmente, a identificação da capacidade de o aplicar.
Uma das heranças do ministro Mariano Gago foi o programa Ciência Viva. Com este tipo de iniciativas, considera que hoje em dia a Ciência está mais acessível à população? Creio que está. Pelo menos, a população tem mais consciência, porque as iniciativas foram muitas e espalharam-se no terreno, não ficaram em papéis e centralizadas. Há muitos centros Ciência Viva espalhados pelo país, promoveram-se muitas iniciativas para dar a conhecer institutos de investigação, ofereceu-se às pessoas a oportunidade de ver no terreno e até de passarem alguns períodos em institutos, para perceberem o que é que lá se faz e o quão bom pode ser. Portanto, acho que sim, que o projeto Ciência Viva e a pessoa que o encabeça, a doutora Rosalia Vargas, lhe tem dado visibilidade com justiça.
De uma forma geral, a população compreende melhor... Não só por essas iniciativas, como por outras. Mas também compreende melhor por uma outra característica desta sociedade... As pessoas têm muito mais acesso à informação através da internet e vão tentar perceber um problema qualquer que lhes diz respeito. As pessoas têm uma atitude muito mais participativa, digamos assim, naquilo que é o exercício da Medicina, que, em termos gerais, eu preferia dizer exercício da saúde. Não estou a ser justa se não destacar uma coisa que destaco com a maior das convicções e que contribuiu em muitos países, como em Portugal, para melhoria do estado de saúde das pessoas, que é a criação de redes de cuidados primários. O que se pretende é criar condições para que todos tenham acesso, que façam fundamentalmente uma educação para a saúde – e voltamos à palavra educação, que é fundamental para tudo – e que tomem as medidas de prevenção necessárias. O médico de família conhece a família, percebe o contexto e tem mais facilidade de atuação. Portanto, a Medicina Geral e Familiar, assim conhecida, é, em termos do instrumento da preocupação com a saúde das populações, um mecanismo importantíssimo. Com isto, não estou a diminuir em nada a necessidade absoluta de haver hospitais diferenciados, mas a maior parte de nós devia tratar a maior parte das maleitas que nos atacam no âmbito da clínica geral e familiar.
Nasceu em Angola e cresceu entre Angola, São Tomé e Portugal... Os meus pais eram funcionários do Estado e, portanto, andávamos sempre a saltar entre aquilo que eram as estadias de um ano cá e quatro anos lá, até mudar de sítio para sítio. Mas isto, que pode ter um impacto negativo no desenvolvimento e no crescimento das crianças, para nós foi muito saudável. [risos]
Que memórias tem desse tempo? De África? Isso era conversa para um dia. Assim, em poucas palavras, as melhores. Não do último ano, que foi de guerra civil, que foi muito desagradável e culminou com tudo o que de mau tem uma guerra. Viver uma guerra não tem nada a ver com qualquer coisa que se possa transmitir. Mas isso foi realmente só o último ano, que culminou com um bombardeamento no hospital, e há limites para tudo. Mas aquilo que foram os primeiros anos da faculdade... Nós tínhamos condições únicas de ensino. Eu não aprendi Anatomia em casa, sentada a decorar livros; nós passávamos a vida, realmente, no teatro anatómico. Tínhamos os nossos livros e cada par de alunos podia fazer a dissecção de cadáver e, portanto, estudar fazendo. Mas eu não tenho nenhuma queixa do ambiente em que vivo, que é também um ambiente especial – tem, no fundo, a inspiração do professor Sobrinho Simões, este espírito da integração, da maximização, da colaboração, da exteriorização, que é muito aquilo que era o ambiente em que vivíamos. Mas África é muito mais do que isso, porque é maneira de estar, é liberdade, também das relações entre as pessoas; é o clima, que ajuda a que as pessoas se relacionem, é... Só vivendo!
Maria João Leite (entrevista) Ana Alvim (fotografias)
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