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«Pedagogia S.», de Luís Souta - Edições Exlibris, 2019
Este estudo reúne uma coletânea de artigos publicados na PÁGINA e no jornal Ensino Magazine. Já tinha lido uma boa parte destes artigos. Gostei de os revisitar. O prefácio de Reis Monteiro ajuda a dar-lhes unidade. É o resultado de mais de 30 anos de aturado e persistente estudo e reflexão sobre práticas pedagógicas, mas também sobre a gestão das instituições de ensino e sobre a cultura escolar. Apesar do tom desprendido das crónicas, é um trabalho de grande maturidade. É um livro que só pode ser escrito após uma vida dedicada à investigação e ao ensino. Trata-se de um documento que permite abrir pistas de reflexão para estudantes e professores. Há desde o início uma profunda preocupação pedagógica que é necessário sublinhar. Estas são boas razões pelas quais merece a pena ler o livro. Mas também há aqui o prazer da leitura que nos é dado por uma escrita cirúrgica, tão precisa quanto solta, que descreve, interpreta e seduz. Ao longo das duas centenas de páginas, o Luís Souta vai-nos envolvendo numa narrativa que nos prende, descrevendo e interpretando o quotidiano do Professor S. O seu estilo autobiográfico consegue ser corrosivo, amargo, perspicaz, mordaz e certeiro na forma como vai descrevendo uma certa cultura escolar... Reis Monteiro, no seu prefácio, sublinha que este livro do Luís Souta “é uma espécie de TAC do ensino superior em Portugal”. Não podia estar mais de acordo.
Livro sentido. Um dos aspetos que sobressai é, de facto, o olhar cirúrgico, o olhar do especialista para com o objeto em análise que se distancia da lauda e da hagiografia de que sofrem muitos estudos e papers de análise institucional. Outro dos aspetos que me agrada nestas crónicas é que o Luís toma partido. Não esconde a sua posição numa aparente assepsia ou numa suposta neutralidade do investigador. A experiência diz-nos que aqueles que dizem não ter partido ou que não tomam partido são habitualmente aqueles que há muito escolheram já o seu lado da barricada. É um livro de memórias docentes, que completa e complementa de uma forma harmoniosa o outro livro do Luís, «Fa[r]do Escolar» [Edições Exlibris, Lisboa, 2014], que acompanha o percurso do Arcílio da primária à faculdade. Nesse outro livro, para além da memória discente do Arcílio e da memória específica da escola salazarista, há uma outra memória omnipresente, a do país do Estado Novo. Estes dois livros de memórias são indissociáveis e são também dois recursos incontornáveis para ajudar a fazer a História da Educação em Portugal. Na altura recenseei aquele primeiro livro. Permitam-me recordá-lo: “O que se pode afiançar ao leitor é que estamos perante uma história pessoal sentida, um relato sincero que não só não branqueia coisa alguma como também não usa o negrejar do que quer que seja, para fazer vingar qualquer posição. Estamos perante um relato que integra a síntese perfeita da dupla condição do aluno/professor. Só escreve assim quem assim sentiu o que escreve. O aluno que se foi e o professor que se é encontram-se na encruzilhada da memória, esse território essencial que oferece, talvez como nenhum outro, matéria-prima de reflexão” [In Medi@ções, revista online da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal, Vol. 2, no 3, 2014]. E se no primeiro livro, ouvíamos o aluno que se foi, neste escutamos o professor que se é. Neste livro fala-se do ensino, na dimensão da prática pedagógica. Aqui se nota a intimidade com o ritmo cardíaco da escola, o conhecimento dos seus ciclos, a sabedoria de quem já viu muito e por isso mesmo tem um olhar que recusa paternalismos, ou misericórdias sobre o que não é aceitável. Este é também um livro sentido. Sobre a escola sentida. De quem sente na pele, como se fosse um pancadão, a ignomínia das praxes académicas, como uma espécie de parêntesis na democracia e na liberdade, mas também a virtualidade da transformação de pessoas com um grau de formação limitado – atenção, não disse jovens, disse pessoas; noutras pessoas capazes de fazer desafios científicos.
Escola sentida. A escola que tem um bater de coração desde a primeira aula, que tem espaços próprios, uns habitados e outros quase vazios de onde progressivamente se deserta (ex. a biblioteca), a escola com os seus públicos, diversos e diferenciados, a escola local de aprendizagens e de vidas, escola espelho do que somos hoje, falhos de leituras e aventuras, a chafurdar no conhecimento googliano, à pressa, naquela pressa que é a algoz da reflexão; a escola do dia-a-dia, ecrã gigante para onde se olha sem se ver, a escola do telemóvel prótese, das tecnologias velozes e acríticas, do alheamento da vida cidadã. Apesar do tom por vezes amargo das crónicas que compõem o livro, não se pense que ele é um mero repositório de críticas ácidas, sem apontar caminhos ou sugerir saídas. Pelo contrário, é antes de mais uma dádiva, como só pode ser um objeto construído ali, no batente, no trabalho diário, na forja do que se gosta e se nos colou à vida. Estas memórias deste tempo tão próximo são também como as outras do Arcílio, um instrumento de combate à desmemória. Porque em 2019, o tempo próximo, é já distante, dada a velocidade destruidora que lhe foi imprimida. O tempo presente, este presente, ou, nas palavras de Eric Hobsbawm, este “presente contínuo” que a inteligência neoconservadora nos pretende impor, sem passado nem futuro, sem história nem memória, sem causa nem consequência, pode conter dentro de si o som do tacão de ferro de que Jack London nos falava. Pretendem-nos calados, obedientes e ignorantes sobre o passado em que caem agora as “espirais de silêncio”, no dizer de Jürgen Habermas. O silêncio sobre o passado, que aniquila a memória, impede que esta se transforme em experiência. A experiência sobre os combates travados, que empresta rumo aos combates do presente. Este livro é, pois, um contributo inexcedível contra o silêncio, o silêncio que atordoa e apaga vidas, práticas, experiências, que, depois de partilhadas, não são meros relatos do que já foi, podendo ser guiões para o que vem aí.
Albérico Afonso Costa
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