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Em memória desses meninos abandonados, ali personificados com eloquência, nada mais pude fazer senão escrever estas simples palavras.
Enquanto o autocarro descia a Alameda da Universidade, eu olhava através da janela sem me aperceber da presença de um casal de velhotes e do suposto neto, sentados nos bancos à minha frente. Até que a avó se fez ouvir, dirigindo-se à criança: “olha ali os pombinhos, estás a ver os pombinhos?”. O homem, mais curioso que o petiz, esticou o pescoço e respondeu: “são gaivotas, mulher, não são pombos”. Ela fez um gesto de desdém com a mão, encolheu os ombros e a conversa terminou ali. O miúdo pareceu não dar por nada, e fez-se-me um nó na garganta ao perceber que para a mulher pombos, gaivotas e tudo mais, desde que tivesse asas, era igual, igual e desinteressante, e que o rapaz já era o fiel depositário da humana ignorância, o objeto desvalorizado, enredado num desamor que a família presumia compensar com prendas caras ou promessas descabidas. Fez-se-me um nó na garganta e desatou-se quando saí na paragem que me cabia, e o carro seguiu o seu destino mais todos os avós e crianças para quem as gaivotas num jardim da cidade eram coisa desprezível de ensinar.
Um dia, quando o menino fosse ver o mar, nada lhe importaria acerca de seres marinhos, nem das terras para além do horizonte, nem de navegadores, nem das artes por ele inspiradas. É nessa geração que a pobreza perpetua, que enche esplanadas de ócio com palavras banais, que foge do tédio embebida em shots, a servir atrás de balcões até à reforma, empenhada nos bancos para ter um cubículo onde morar num galinheiro da periferia, cuja felicidade se fecha dentro de uma carripana paga a prestações ou transborda na idade de votar, é nela que são depositados os embriões da marginalidade, é para ela que são concebidos a publicidade, os centros comerciais, que são promovidos os ídolos, à sombra dos abonos de família e na mira das juventudes partidárias. Que importa saber de arte, de ciência, de filosofia, de história ou de política, se basta as aves voarem, se aprender o código da estrada é uma conquista maior que a de todos os aventureiros juntos? Que sentido faz vasculhar nos destinos menos transparentes dos impostos, se a net permite música e muito mais sem direitos de autor?
Os meninos que querem voar, e a quem cortam as asas, não poderão ver os demais que são soldados, escravos, órfãos de guerra, esqueletos, náufragos; não poderão saber, ou tentar saber, os porquês da condição e da miséria humana. Irão ser assíduos nas arenas da bola, hão-de erguer protestos de rua e voltar a casa para arrumar bandeiras e cartazes e, na primeira oportunidade, esquecer-se de ser honestos. As asas, depois de cortadas, implicam a prudência nessa palavra perigosa que é o ‘não’, são a origem das miragens onde a subversão é sinónimo de crime, dão palco ao circo e infestam as sociedades de cidadãos amestrados. Quantas coisas me trespassaram o espírito por conta de uma viagem num autocarro que descia a Alameda da Universidade! Em memória desses meninos abandonados, ali personificados com eloquência, nada mais pude fazer senão escrever estas simples palavras. Mas ainda não me recompus: podia ter sido eu esse passageiro pela mão do abandono.
Luís Vendeirinho
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