Página  >  Opinião  >  Nós e os outros

Nós e os outros

A compaixão pelos irracionais não deve obliterar a compaixão pelos racionais necessitados de ajuda, que chegam a viver debaixo das pontes ou nas estações desertas dos comboios até ao último limite da pobreza e solidão.

1. Quando uma organização – cívica, política, religiosa ou qualquer outra – se propõe pugnar por uma causa como o direito dos seres vivos usufruírem os benefícios da Natureza que os criou, tem de partir de um dado indiscutível: o homem é o único ser que precisa dos outros seres, animais ou vegetais, para viver. E de reconhecer também o inverso: nenhum dos outros seres precisa do homem, seja animal, ave, peixe ou árvore. Estes nascem e vivem do ambiente que os mantem – terra, mar e ar – e, se não forem mortos pelo homem, só se extinguem por doença ou velhice.
O surgimento de um novo partido político que se designa pela tríade Pessoas, Animais e Natureza, sem privilegiar nenhum, logo suscitou a minha atenção, pela singularidade de um título temático dispensar a identificação político-ideológica comum aos partidos que no título pré-anunciam a doutrina com que vão responder à secular luta de classes ou ao diferendo capital-trabalho, que têm moldado a consciência humana. Então, inesperadamente, perspectiva-se uma filosofia naturalista – digamos ecológica – que sintetiza o direito à existência de todos os seres vivos, ditos racionais ou irracionais, em harmonia com a natureza que os formatou.

2. Disse filosofia – indagação racional sobre a vida e o homem – como poderia dizer ciência – conhecimento metodológico sobre as coisas da natureza e os seus fenómenos. Mas como já para Aristóteles e Descartes (cogito, ergo sum) o exercício pleno do saber era exclusivo do homem, ser racional, a básica condição de existir dos outros seres ditos irracionais não passava de um estado reflexo ou mecânico que os inibia de possuírem um sentimento volitivo, manifestado através da fala ou da escrita, como é próprio do homem. Por isso não distinguiram os ditos irracionais que, por índole ou domesticação, como o cão e o gato, dão provas de saber o que lhes interessa.
Aliás, a ideia de uma natureza exclusiva do ser humano é comummente aceite, tanto por filósofos como por analfabetos, para os quais nada adiantaram as investigações dos naturalistas Charles Darwin e Alfred Wallace, cuja observação, em vários continentes, do comportamento dos animais, ainda os levaram a considerar que estes tinham uma vida mental ‘complexa’... Não proclamaram que a ‘inteligência’ dos animais, mais visível nos animais de companhia, em diversos aspectos era comparável à dos humanos, não por partilharem da cartesiana dúvida metódica, mas talvez para não provocarem ainda mais a ira da Igreja anglicana e dos filósofos e cientistas acreditados, como sucedeu.
Que diriam estes se ouvissem alguém dizer, como Blaise Pascal, “quanto mais conheço as pessoas, mais gosto do meu cachorro” ou, como Alexandre Herculano, “quanto mais conheço os homens, mais estimo os cães”? Ou tivessem visto, como eu vi, um jovem chimpanzé e um menino de cinco anos, sentados à mesma mesa, comendo o pequeno-almoço, depois de o primeiro ter ido acordar o segundo, puxando-lhe o cabelo – o que fazia todas as manhãs?
Todavia, hoje mesmo, em que vemos as ruas das cidades pejadas de cães e gatos, e dentro de muitas casas fazendo companhia a quem já outra não tem, por vezes comendo na mesma mesa e dormindo na mesma cama (qual ente querido), podemos decerto concluir que sendo o amor e a companhia uma necessidade do ser humano, se não for por uma pessoa, será por um cão ou gato...
E mais: quem os tem e observa não hesitará em afirmar que o seu ‘bicho’ ama e responde ao seu dono sem precisar de emitir qualquer som (bastando-lhe o movimento), mostrando que também ele é sensível à alegria e à tristeza e sofre de saudades do dono ausente e da casa onde foi feliz.

3. Numa entrevista ao jornal Público de 6 de setembro passado, no seguimento de um colóquio sobre “O Futuro do Planeta”, promovido pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, em que estiveram presentes o ex-secretário de Estado norte-americano John Kerry, a exploradora e bióloga Sylvia Earle e o escritor Paul Theroux, o também participante ecólogo norte-americano Carl Safina, respondendo à entrevistadora Renata Monteiro, fez uma interessante referência aos perigos climatéricos e às práticas predadoras, contrárias à biodiversidade, que ameaçam a vida no nosso planeta, frisando a certa altura:
“Somos de extremos porque somos o animal mais compassivo, mas também de longe o mais destrutivo. Há muito que podemos aprender ao tratar os outros animais com mais compaixão, ao tentar aprender lições com eles, a capacidade deles de viver sem prejudicar o mundo. (...) Mas, para muitas pessoas, se não podem vender ou comer um animal, então não tem qualquer valor. E esta é a grande doença da nossa civilização.”
O cientista só não referiu o valor sacrifical dos animais em Portugal porque ignorava, certamente, que aqui se fazia caça desportiva aos pacíficos coelhos, tordos e perdizes e se criavam bovinos para farpear nas touradas. Se soubesse, não deixaria de citar Mahatma Gandhi: “o grau de civilização de determinada sociedade pode ser medido pela forma como trata os seus animais.”
É de esperar que qualquer entidade naturalista, para se afirmar, diga o mesmo que o pacifista libertador da Índia. Mas sem esquecer que a compaixão pelos irracionais não deve obliterar a compaixão pelos racionais necessitados de ajuda, que chegam a viver debaixo das pontes ou nas estações desertas dos comboios até ao último limite da pobreza e solidão. E quando vêem passar à sua frente gordos e lampeiros cachorros de estimação, não podem deixar de se interrogar: “Mais vale a sorte de um cão que o direito de um pobre?”

Leonel Cosme


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo