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Para o Henrique, com violetas
No passado dia 2 de novembro, Jorge de Sena faria 100 anos. Em 1969, na obra «Peregrinatio ad Loca Infecta», publicou o poema Couraçado Potemkin dedicado ao filme de Serguei Eisenstein. Jorge de Sena viu o filme em 1961. Em Portugal, só foi possível vê-lo depois do 25 de Abril, exceto em sessões clandestinas. Agora até há uma edição em DVD que reproduz a sessão de estreia, com a bandeira vermelha onde Eisenstein pintou à mão cada fotograma. Somos uma geração com sorte.
Paulo Teixeira de Sousa
Couraçado Potemkin
Entre esquadra que aclama o couraçado passa Depois da fila interminável que se alonga sobre o molhe recurvo na água parda, depois do carro da criança descendo a escadaria, e da mulher de lunetas que abra a boca em gritos mudos, o couraçado passa. A caminho da eternidade. Mas foi isso há muito tempo, no Mar Negro.
No cais do mundo, olhando o horizonte, as multidões dispersas esperam ver surgir as chaminés antigas, aquele bojo de aço e ferro velho. Como os vermes na carne podre que os marinheiros não quiseram comer, acotovelam-se sórdidas na sua miséria, esperando o couraçado.
Uns morrem, outros vendem-se, outros conformam-se e esquecem e outros são assassinados, torturados, presos. Às vezes a polícia passa entre as multidões, e leva alguns nos carros celulares. Mas há sempre outra gente olhando os longes, A ver se o fumo sobe na distância e vem trazendo até ao cais o couraçado.
Como ele tarda. Como se demora. A multidão nem mesmo sonha já que o couraçado passe entre a esquadra que aclama. Apenas, com firmeza, com paciência, aguarda que o couraçado passe entre a esquadra que aclama. Apenas, com firmeza, com paciência, aguarda que o couraçado volte do cruzeiro, venha atracar ao cais.
Mas mesmo que ninguém o aguarde já, o couraçado há-de chegar. Não há remédio, fuga, rezas, esconjuros, que possam impedi-lo de atracar.
Há-de vir e virá. Tenho a certeza como de nada mais. O couraçado virá e passará entre a esquadra que o aclama.
Partiu há muito tempo. Era em Odessa no Mar Negro. Deu a volta ao mundo. O mundo é vasto e vário, e dividido, e os mares são largos. Fechem os olhos, cerrem fileiras, o couraçado vem.
Jorge de Sena, São Paulo, 23.12.1961 (depois de ver o filme de Eisenstein)
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