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O nosso Shakespeare

So shalt thou feed on Death, that feeds on men,
And, Death once dead, there’s no more dying then.

William Shakespeare, Soneto 146

Permitam-me que recorde um importante evento cultural que decorreu em Cascais: a comemoração dos 450 anos do nascimento de William Shakespeare. E porquê se comemorou em Cascais – podia ser noutro lugar qualquer de Portugal – o aniversário do bardo inglês, perguntar-se-ão alguns, talvez mais virados para conceções de índole chauvinista e provinciana?

Há, pelo menos, cinco razões que justificam plenamente que Cascais tenha comemorado o aniversário de Shakespeare:
1. é uma vila cosmopolita, aberta desde sempre a receber as ideias e manifestações culturais e artísticas, bem como os homens, provenientes de todas as latitudes, sendo um espaço onde convivem grupos humanos que comunicam entre si em idiomas muitos distintos, desde o inglês, maioritário, ao francês, russo e chinês;
2. a influência de Shakespeare na vida cultural portuguesa – traduzido para a nossa língua por personalidades tão diferentes como o rei D. Luís I, o dirigente comunista Álvaro Cunhal, o grande poeta e romancista Carlos de Oliveira (para muitos o maior escritor português do século XX), o grande tradutor e poeta Vasco Graça Moura, e outros, e levado à cena por tantos encenadores de talento como António Pedro, Luzia Maria Martins, Carlos Avillez, Luís Miguel Cintra, Joaquim Benite, João Lourenço, Jorge Silva Melo, e outros – é indiscutivelmente reconhecida por todos os estudiosos da literatura (ver «Shakespeare Entre Nós», coletânea de ensaios organizada pelos professores Maria Helena Serôdio, João de Almeida Flor, Alexandra Assis Rosa, Rita Queiroz de Barros e Paulo Eduardo Carvalho);
3. estas comemorações permitiram ainda homenagear D. Luís I, o monarca culto que, ao tomar decisão de, em 1870, passar a gozar os prazeres do mês de outubro em Cascais, alterou definitivamente a personalidade da terra de pescadores – alunos da Escola Profissional de Teatro de Cascais representaram com garbo a Cena VI do 1o Ato de «Hamlet», a partir da tradução de D. Luís;
4. quase last but not least, o evento permitiu reunir, durante um fim de semana, alguns dos nossos mais qualificados académicos (António Feijó, Maria Helena Serôdio, Rui Carvalho Homem, Mário Avelar e Mário Vieira de Carvalho, representando as Faculdades de Letras de Lisboa e do Porto, a Universidade Aberta e a Universidade Nova) e um prestigiado encenador (Carlos Avillez, do Teatro Experimental de Cascais), bem como duas atrizes (Ana Padrão e Lara Beirão da Veiga) e um ator/encenador de méritos indiscutíveis (Marco Medeiros), que se encarregaram de ler a versão original e as respetivas traduções (de Carlos de Oliveira, Vasco Graça Moura e, perdoem a imodéstia, minhas) de sete sonetos shakespeareanos.
A quinta razão, certamente a mais importante, é a persistência da obra do poeta e dramaturgo, a admiração que tem concitado ao longo dos séculos, em suma, a genialidade que a distingue.
Já foram escritos milhares de livros que visavam provar que as peças e os poemas atribuídos àquele, aparentemente banal, burguês de Stratford seriam, afinal, da autoria das mais variadas e impensáveis pessoas, desde Francis Bacon à própria rainha Elizabeth, passando por Christopher Marlowe, Walter Raleigh e a Condessa de Pembroke.
Os responsáveis por estas tão ousadas quanto absurdas afirmações – e outras, segundo as quais terá sido soldado, marinheiro, advogado, viajante, etc. – são incapazes de assimilar a simples e lógica noção de que um jovem com tanto talento, tanta imaginação e tanta inteligência, que quando chegou a Londres já era parcialmente conhecedor do universo teatral e dos seus diferentes patronos, que cirandava de taverna em taverna e convivia com as mais inesperadas personagens, podia interiorizar com relativa rapidez e proficiência todos os elementos indispensáveis à escrita das suas peças: são estas capacidades que concorrem para criar o génio.
As espantosas diversidade e empatia exibidas nas peças em relação a todos os géneros de gente – rústicos, guardas, taberneiros, meretrizes, alcoviteiras, soldados – não é compatível com a mirífica ideia de que tenham sido escritas por um grande do reino ou por espúrias associações de condes e condessas, nem sequer por filósofos, ou políticos, ou colegas de ofício, cujas obras revelam características completamente distintas das que ele escreveu.

Fonte inesgotável. Numa justa homenagem à sua produtividade, à vastidão e profundidade da sua arte, muitas vezes Shakespeare tem sido comparado à Natureza. Mas não se pense que muitos dos traços desse homem, que um dia abandonou Stratford para acabar por lá regressar sem alarde, não podem ser identificados na multidão de personagens que criou, que, como alguém assinalou, “a sua cara esteja para sempre perdida entre essas máscaras vivas”.
Seja qual for a perspetiva que se queira aprovar, a verdade é que a obra, a obra genial, resiste à passagem do tempo. Foi isso que Stefan Zweig quis dizer quando escreveu que “a verdadeira Inglaterra é Shakespeare e os shakespeareanos; tudo aquilo que o precede não passa de preparação e tudo aquilo que se lhe segue é mera imitação frustrada desse impulso original”.
Completando este raciocínio, o grande escritor espanhol contemporâneo Javier Marías, profundo conhecedor da literatura inglesa, escreveu definitivamente: “Frecuento a Shakespeare porque para mí es una fuente de fertilidad, un autor estimulante. Lejos de desanimarme, su grandeza y su misterio me invitan a escribir, me espolean, incluso me dan ideas: las que él sólo esbozó y dejó de lado, las que se limitó a sugerir o a enunciar de pasada y decidió no desarrollar ni adentrarse en ellas. Las que no están expresas y uno debe ‘adivinar’. Por eso he hablado de misterio [...].»
É precisamente esta ideia que vos deixo: William Shakespeare continua um mistério, uma fonte inesgotável de conhecimento e prazer, um mestre inigualável. Sobretudo isto, porque o que realmente conta é a grandeza, o refinamento e a longevidade da obra, afinal aquilo que nos leva a declará-la clássica.

Salvato Teles de Menezes


  
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