É crescente a tendência, que começa muito cedo, para a desestruturação social que conduz à secundarização do mundo da criança, levando-a a passar horas a mais em um mundo que não é o seu. O seu mundo é o jogo.
Achei delicioso, mas deixou-me a pensar. Saí em direção à escola do meu neto de três anos. Ali, ao virar da esquina. Cheguei à sala, vi-o divertido, obviamente. Olhou-me e correu ao meu encontro. O ritual seguiu-se: ir à dependência onde estão penduradas a mochila, o casaco e a lancheira. Tudo preparado e ala para casa. Foi-me falando do dia com os amiguinhos. Relatório feito e, já em casa, colocada a ‘bagagem’ no sítio certo, olhou-me e disse naquela voz infantil: vou fazer os tpc. Os tpc?, retorqui. A ‘pessoura’ mandou fazer riscos, concluiu. E lá foi fazê-los em cores variadas. A observação daquele quadro, de acordo com o que estudei sobre o desenvolvimento motor e a importância do jogo, levou-me a reler um texto que publiquei há alguns anos: (...) entrávamos na escola a 7 de Outubro e havia tempo para o jogo em um sentido lato, tempo para brincar de forma muito séria (...). Li em Jean Chateau (1961), “se o jogo desenvolve as funções latentes, compreende-se que o ser mais bem dotado é aquele que mais joga (...) para ela quase toda a actividade é jogo, e é pelo jogo que ela descobre e antecipa as condutas superiores”. Para Claparède (1905), “o jogo é o trabalho, o bem, o dever, o ideal de vida. É a única atmosfera em que o seu ser psicológico pode respirar e, consequentemente, agir (...) perguntar por que joga a criança, é perguntar por que é criança”. Ou, então, na palavra de Schiller “o Homem não é completo senão quando joga”.
Duas reflexões. Preocupações com muitos anos, mas atuais. Isto despertou-me duas reflexões complementares. Posso entender ‘fazer riscos’ como uma preocupação pela motricidade fina e pelo controlo óculo-manual, facilitadores, por exemplo, da escrita; só que isso, sustento, deve ser integrado no leque das múltiplas atividades do estabelecimento de aprendizagem. Outra, que trago como preocupação maior, é a crescente tendência para a desestruturação social que conduz à secundarização do mundo da criança, levando-a a passar horas a mais em um mundo que não é o seu. O seu mundo é o jogo. Consequentemente, concluo, menos ‘ipad’ e mais, muito mais, o jogo onde possa “descobrir e antecipar as condutas superiores”. Há uma urgência, na feliz síntese de Carlos Neto (2018), de tirar as crianças do sofá, contrariando o avassalador digital: “brincar é estruturante, faz parte do comportamento espontâneo e organizado, beneficia o plano sensorial, percetivo, social, cognitivo e a relação emocional (...) ao brincar ela ganha autonomia, explora, descobre, ajuda a lidar com os próprios complexos, pelo que é o comportamento que melhor ajuda a estruturar as competências essenciais para o futuro”. Brincar é uma forma natural de aprender. O problema reside em estabelecer um equilíbrio entre as exigências motoras da infância e a opressão tecnológica. Quase não vivemos sem o sinal de internet. Parece que tudo para à nossa volta e que não existem soluções para a sua ausência.
Forçar o equilíbrio. Há dias, durante uma manhã, por avaria de um equipamento, a net deixou de funcionar. Eu que venho de um tempo distante das tecnologias, eu e os quatro netos parecíamos ter entrado em desespero. Avô, não há net! Avô, quando é que vem o técnico? Até o mais novo, com três anos, para ver no Ipad os programas do Panda, insistentemente, dizia: avô não há net. E eu, que não sou um netdependente, também dei comigo, lá no fundo, a olhar para as paredes! Confesso que aquela manhã sem net me proporcionou vaguear em pensamentos. Desde logo, como é possível, na escola, no tempo que estamos a viver, salvo raras exceções, existir um condicionamento à sua plena utilização, por não estar minimamente preparada nos planos organizacional, pedagógico, dos equipamentos necessários e da mentalidade, para conduzir a aprendizagem de acordo com as exigências do tempo da Quarta Revolução Industrial? Quando, apenas em uma manhã, colocou todos em desassossego pela falta de sinal, imagino uma escola com centenas, durante semanas, meses e anos a fazerem um esforço para, sentados, escutarem professores a debitar os conteúdos do manual, em fidelidade ao intocável programa. Quando tudo está à distância de um clique! Finalmente, a observação maior da conjugação das situações que vivi: se, na escola, ainda assim é, e se, em casa, entre os ‘riscos’ e a ‘retaliação’ à escola, a opção é pelo sofá e pela tecnologia, resta, com inteligência, forçar o equilíbrio entre os ‘riscos’ e a net, para que o jogo ganhe o seu imprescindível espaço estruturante na construção da adultez.
André Escórcio
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