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Utopia, o ser humano e a prevalência da realidade

A maior utopia foi a que nasceu com a Revolução Francesa – alicerçada no pensamento de Jean-Jacques Rousseau, Montesquieu, etc., a ideia de que todos os homens são livres e iguais em direitos seria seguida pelo marxismo (e socialistas utópicos vários).

1. Muitos autores em épocas diferentes se interrogaram sobre a desigualdade entre os homens, a existência de uma hierarquia que se impõe pela força, a propriedade privada e o Estado. Com o aparecimento da escrita o controlo dos que mandavam sobre os outros aumentou. As terras passaram a ter donos; o homem deixou de ser recoletor e sedentarizou-se. A propriedade privada veio para ficar. Os chamados ‘Impérios Despótico’ – Acádia, Suméria, Assíria, Egito (e outros) – deixaram um rasto de domínio. No que em História se chama ‘a longa duração’, podemos encontrar permanências: “muitos com pouco, poucos com muito”; hierarquia; prevalência da violência. Platão (428-348 a.C.), elaborou na República uma primeira utopia comunista: tudo devia ser de todos; as pessoas viveriam em comunidade, não sabendo quem eram os seus pais – tal evitaria a herança. A sociedade assim engendrada precisava de guardas, aos quais se devia contar uma história que os levasse a não se valer da sua força para dominar os outros. Argumento fraco, este.
Muitos anos depois, Daniel Defoe escreveu uma utopia (Robinson Crusuoe) na qual dois homens vivem no melhor dos mundos, sós, numa ilha. Houve mais utopias, como A Cidade de Deus, de Santo Agostinho, ou a Utopia, de Thomas More (inspirada na República de Platão). Aqui, “o parlamento zelava pelo bem do povo, pois descobrira que a propriedade individual e o dinheiro são incompatíveis com a felicidade”.
A maior utopia foi, contudo, a que nasceu com a Revolução Francesa – alicerçada no pensamento de Jean-Jacques Rousseau, Montesquieu, etc., a ideia de que todos os homens são livres e iguais em direitos seria seguida pelo marxismo (e socialistas utópicos vários).

2. Infelizmente, enquanto diziam seguir a doutrina de Cristo, houve homens que criaram a Inquisição. E enquanto seguiam as doutrinas de Marx, outros homens criaram totalitarismos. No dia 24 de junho de 1945, realizou-se o Desfile da Vitória, na Praça Vermelha, em Moscovo. Estaline queria ter montado um cavalo branco, mas terá caído e, irritado, cedeu o lugar ao marechal Georgy Zhukov. Viria a ser preso Alexander Novikov, comandante da força aérea soviética, que acusou Zhukov de conversas perigosas. Beria, o criminoso chefe da NKVD, considerou que Zhukov não estava grato a Estaline e foi necessária a intervenção do marechal Konev (rival pessoal de Zhukov) e de Pavel Ribalko, que afirmaram que não se podia dar crédito a testemunhos arrancados sob tortura.
Georgy Zhukov salvou a União Soviética no começo da invasão alemã; foi três vezes herói da URSS e podia ter morrido no Gulag. Como diz uma testemunha, “ficámos muito magoados por causa de Zhukov. Sentimos pesar nos nossos corações, mas todos nos mantivemos em silêncio” (Laurence Rees, «Segunda Guerra Mundial À Porta Fechada»).

3. O problema da utopia, que quer dizer ‘em parte nenhuma’, é pensar que “o homem é naturalmente bom” (Rousseau). Quantos querem partilhar algo?... O ser humano é um predador organizado em torno de um tubo digestivo. Não é um animal cooperante. Quantos, ao longo da história da humanidade, terão sido vilipendiados, torturados, presos, esquecidos, em nome da ‘Realpolitik’? Quantos mais o serão no futuro? Quantos tiveram a coragem de ser revolucionários, rejeitar o seu lugar na multidão, não ser mais um mais igual que os outros? Quantos tiveram a coragem de ser Ivan Konev ou Pavel Rybalko? Quantos, mesmo servindo com convicção um regime, não tiveram a sorte de Zhukov e foram ‘exemplo’ para que o povo soubesse quem mandava?
Juvenal, nascido entre 55 e 60, em Roma, falecido depois de 127, foi o autor das Sátiras. Foi ele quem – retomando o problema iniciado por Platão, na República – formulou a questão ‘quem guarda o guarda?’ Ou, podemos nós dizer, quem nos protegerá dos nossos protetores? De onde aparecerão guardas que cuidem de nós sem enveredar pela loucura?

Carlos Mota


  
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