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O legado de Diógenes

Se tiver de emigrar, direi na fronteira: “dou a palavra de honra que amanhã venho mostrar o passaporte”. Não vão acreditar e terei de continuar por aqui.

Quando ouço falar de honradez, vem-me à memória o exame de admissão ao liceu. Perante o professor que me pedia o bilhete de identidade, só pude responder: “Esqueci-me, mas dou a palavra de honra que amanhã lho venho mostrar”. Assim o fiz, e ele, ante a minha presença respondeu: “não vou vê-lo porque me bastou a tua palavra”. Por isto, e muito mais, estranho a comicidade para que é remetida a figura de Diógenes, “O Cínico”, nos relatos dos seus confrontos na Atenas doutrora.
De facto, honrar a palavra é um chavão que a realidade desmente, uma fragilidade, nestes dias de desmandos cujo exemplo vem de cima. Os votos religiosos de circunstância, as promessas de políticas, as dívidas financeiras, a publicidade enganosa, são exemplos acabados do termo burla, como as facas que os canalhas enfiam nas costas dos seus amigos. São caricatas as declarações de lealdade nas posses dos funcionários e dirigentes públicos, fiéis nas virtudes e cúmplices na tramoia.
Dir-se-á que é da nossa condição frágil, do instinto de sobrevivência, mas todo o pecador justifica a sua conduta na prece pela absolvição, na absolvição que vem sempre pela mão da ignorância e a coberto do medo pelo exercício da liberdade. A falta de honrarmos os compromissos tem as costas largas, acontece por descuido, por cedência à chantagem ou simples esquecimento. Há um laço que estabelecemos com o mundo, já maturos, que é o do respeito pela casa comum, seja ela a urbe, a aldeia ou o local mais inóspito, respeito que se traduz pelo respeito pelo outro, o semelhante na glória e na miséria.

O homem honrado é um herói não medalhado, um soldado desconhecido que enfrenta os perigos do labirinto e deserta na guerra injusta, alguém que não alimenta a escravidão, sem se fazer escravo ou fazer o outro escravo. Bem conhecemos o argumento de que a moral não põe o pão na mesa, não resolve as dores do mundo, mas não será a sua ausência, não da moral que é mãe dos preconceitos, mas da elementar ética, que provoca a fome no mundo e justifica as carnificinas que a guerra traz pela mão?
São as criaturas de má índole aquelas que viram costas ao sofrimento do alheio, e cegos os seus seguidores.

A honradez respeita a condição dos fracos, as crianças e os velhos, reconhece a obra do cientista e do lavrador, ela é paciente, pena é que não seja contagiosa nestes dias de enfermidade tão mais grave quanto o desprezo pelos antídotos possíveis. É uso a nossa pretensa honestidade manifestar-se nos domínios do conhecido, da prova, da coisa pública, para dela se poder alardear a coberto da censura e do escrutínio. Porém, o reduto da nossa consciência é tão compensador como os frutos da ação, algo que tanto nos acompanha se ousamos estender a mão a uma esmola ou somos benfeitores.
Graças como a da boa conduta não se transmitem pelos manuais, não se anunciam de antemão, são coisa rara porque na busca duma perfeição ideal muito fica pelo caminho. A pior ignorância é aquela que se não reconhece, sem tempo para nos revermos imperfeitos, cativos nesta barbárie do sumptuoso, enjaulados por nossa invenção do artificial, e a pior pobreza também, resignados à espera dos milagres de que a vida nos priva. Diógenes do ontem, do hoje ou do amanhã, tanto faz, porque, se em dois milénios nada aprendemos ou não quisemos aprender, a honra permanece colada ao corpo, à família, ao bom-nome e à imagem que queremos tenham de nós.
Afinal, será esse conceito tão vulgarizado apenas sinónimo de respeito, algo que os investigadores podem colocar à lupa sem lhe vislumbrarem o âmago. Se tiver de emigrar, direi na fronteira: “dou a palavra de honra que amanhã venho mostrar o passaporte”. Não vão acreditar e terei de continuar por aqui.

Luís Vendeirinho


  
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