Quem, neste Portugal ainda confiando que melhores dias virão, em tempo de chuva e vento forte não se refugiou num centro comercial e optou por ficar em casa para ler e ver televisão, há de ter ficado mais apreensivo do que era costume. Por vários motivos.
1. Num jornal de referência, Guilherme Valente, cético da política educativa em curso, escreve sobre o Perfil dos Alunos para o Século XXI: “Educação para a cidadania é o que num país livre uma escola a sério promove em todas as disciplinas, aulas, actividades momentos. (...) Uma escola, enfim, regida pelo respeito pelos factos, exercício da razão, procura da verdade. É esta a desejável, real, eficaz, educação para a cidadania. E única que o país deve permitir.” Se não, “veremos as crianças do Ensino Básico, sem saberem nada de tudo, a opinar sobre temas como, por exemplo, a eutanásia. Isto é, a engolirem o que (...) lhes queiram meter na cabeça. O equivalente à EC das crianças-soldados do Boko Haram ou do Daesh, das juventudes fascista, comunista e nazi.”
2. Na anterior PÁGINA, num artigo intitulado Inteligência Artificial e Aprendizagem Automática, Francisco Silva reflete: “A atenção voltou à inteligência artificial (IA) depois de alguma hibernação mediática. Hoje não passa um dia sem que tenhamos notícias sobre a IA. Dos seus belos robôs (antropormóficos, pois claro!); das questões éticas levantadas, do medo de sermos suplantados pelas máquinas; do impacto nos postos de trabalho, talvez reacendendo a vontade de encravar as máquinas, sabotar o seu funcionamento, com os ‘sabots’ das operárias e dos operários, como chegou a acontecer em lutas laborais do século XIX... Mesmo se grande parte das discussões atualmente em curso repete aqueles temas já próprios da fase anterior. Na verdade, muita da IA de que se fala hoje inclui como novidade de tomo como que um corte epistemológico – a introdução da aprendizagem automática, da machine learning. (...) Com os algoritmos de aprendizagem automática explora-se a construção de algoritmos que podem aprender com os dados à sua disposição e efetuar predições. Tais algoritmos não são construídos com base em programas de computadores ‘estáticos’, tradicionais. Isto é, neste caso, são os computadores a programarem-se a si mesmos.”
3. Na mesma altura, mas já com a ameaça dos tufões, tsunamis e incêndios que devastam outras partes do planeta, de que a televisão vai fornecendo repetidamente imagens aterradoras, em diferentes canais vemos, num anúncio publicitário, um antigo opinion maker a prelecionar para um grupo de crianças, com a assistência da sorridente Sophia, famigerado robô criado por David Hanson para uma empresa de Hong Kong. Sophia, capaz de reproduzir 62 expressões faciais, foi projetada para aprender, adaptar-se ao comportamento humano e operar com seres humanos.
Então, estarrecemos. E não foi por ouvir a chuva fustigando os terraços e o vento sacudindo portas e janelas. Dias antes, tínhamos lido que o famoso físico inglês Stephen Hawking, antes da sua morte, em março passado, deixara um aviso sobre os perigos que atravessavam a ciência e a educação face a um futuro em que, além de alterações climáticas extremas, a humanidade poderia vir a ser dominada por uma casta de super-humanos, resultante de uma modificação do DNA da gente rica (a ovelha Dolly poderia ter sido uma inspiração...) , enquanto a gente pobre se ia extinguindo, por não responder às exigências da vida futura. E isto porque, sendo bastantes os cientistas apaniguados e o trabalho de máquinas e robôs, nem os escravos seriam necessários na Terra para realizar as tarefas mais abjetas... Convenhamos que já não se encontrando o Homem na Caverna de Platão, mas continuando a sua utópica República inscrita na agenda dos ideólogos progressistas, ainda é difícil separar o sonho da realidade e considerar, como o poeta ibérico António Machado, que “não há caminhos, o caminho faz-se caminhando.” Ou, como Fernando Pessoa, a pensar no general romano Pompeu, incentivando os seus marinheiros, “Navegar é preciso; viver não é preciso.” Pela nossa parte, que, como um, hoje, mal nomeado filósofo do nosso tempo, defendemos que “não basta conhecer o mundo, preciso é transformá-lo”, gostosamente voltamos a reler um artigo do também poeta José Tolentino Mendonça, em que diz: ”A vida, no seu sentido profundo, também precisa de ser cultivada. E essa deve ser considerada a actividade primeira da nossa existência.” Mesmo que seja “longo o caminho para chegar a si”. Longo e para já imponderável, se refletirmos sobre o que, no caminho, quem ensina e educa terá de confrontar-se na escola com um público curvado sobre o seu tablet, na rua caminhando só e em casa, com passivos animais de companhia, teclando no computador e no telemóvel para dizer como continua vivo, ainda que graças a vacinas contra as doenças domésticas e a ansiolíticos contra as depressões. De qualquer modo, escolher um caminho para não parar – é preciso. Porque parar seria como morrer de todo.
Leonel Cosme
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