Não é necessário incluir formalmente no programa de governo de um candidato o extermínio, a defesa do genocídio e do ódio. A apologia à barbárie pode ser realizada de forma subliminar, fazendo circular a mensagem de que adversários devem ser destruídos – no caso brasileiro, contudo, a defesa da barbárie foi feita de forma direta e explícita.
Com o quadro La vérité sortant du puits (‘A verdade saindo do poço’), Jean-Leon Gérôme deu expressão artística a uma lenda do século XIX segundo a qual um dia a verdade e a mentira teriam se encontrado. E se passou a seguinte situação: A mentira diz à verdade: - Está muito bonito o dia hoje. A verdade olha à volta dela e levanta os olhos para o céu, e o dia estava realmente bonito. Passam muito tempo juntas até chegarem à frente de um poço. A mentira diz à verdade: - A água está muito agradável, vamos tomar banho juntas! A verdade, mais uma vez desconfiada, toca na água; ela estava realmente agradável. Despem-se e põem-se a nadar. De repente, a mentira sai da água, põe as roupas da verdade e foge. A verdade fica furiosa, sai do poço e corre por todo o lado para encontrar a mentira e recuperar as suas roupas. O mundo vendo a verdade toda nua, vira o olhar com desprezo e raiva. A pobre verdade volta para o poço e desaparece para sempre, escondendo a sua vergonha. Desde então, a mentira passa a viajar por todo o mundo vestida como se fosse a verdade, satisfazendo as ‘necessidades da sociedade’, e o mundo não quer, em nenhum caso, ver a verdade nua.
Mundo invisível. Além de serem um tema de natureza sociológica, as necessidades da sociedade também comportam uma dimensão antropológica. Como bem lembrou Luiz Eduardo Soares, recentemente, uma imensa parte de nossas vidas é regida pelo que é invisível, isto é, emoções, afetos, expectativas, desejos, memórias, fantasias, nossas crenças, valores e ideias que produzimos ou reproduzimos. Um aspecto central desse mundo invisível – que, contudo, nos norteia – é que ele está imerso no grande oceano chamado inconsciente. Nesse sentido, os símbolos são como barcos que lampejam no fundo escuro da noite. Quando ocorre as ondas estarem baixas, nós os vemos, iluminados, sinalizando-nos alguma mensagem distante; quando estão altas, eles desaparecem no longínquo horizonte imperceptível. Ter em conta seja o referido ‘mundo invisível’ ou a verdade nua que, com ódio, muitas pessoas se negam a enxergar, é uma condição fundamental para que se entenda o crescimento – com apoio da população – das posições fascistas atuais, cujo caso mais emblemático, ultimamente, é o brasileiro. Porém, deve-se considerar precedentemente, relembrando Karl Polanyi, que uma das raízes do fascismo decorre da incompatibilidade entre o ímpeto do mercado pela acumulação desenfreada e os pressupostos da democracia. Daí, desenvolve-se um imaginário, como esfera do aludido mundo invisível, onde a barbárie ganha lugar e a ‘banalidade do mal’ – conforme a expressão de Hannah Arendt – é naturalizada, com as pessoas se negando a enxergar a verdade nua presente nos absurdos atos praticados (intolerância, agressões e morte). Ou seja, o fascismo produz um universo axiológico que manipula ideias (políticas, religiosas, étnicas, de gênero, etc.) e coloniza mentes, levando as pessoas a verem como inimigos até mesmo os seus iguais do ponto de vista do estatuto social: trabalhador contra trabalhador, o desejo de destruição entre colegas de profissão, vizinhos atacando vizinhos, etc.
O caso brasileiro. É revelador que a ascensão de manifestações fascistas esteja a ocorrer num momento posterior a um período de inclusão social, onde segmentos da população historicamente condenados ao sofrimento da desigualdade social começaram a desfrutar de um mínimo dos benefícios da ‘democracia econômica’, mediante a intervenção do Estado, passando, assim, a ocupar espaços antes dominados somente pelos extratos mais elevados da sociedade brasileira. Na sua abordagem sobre o fascismo, Nicos Poulantzas aponta os limites de dois enfoques geralmente utilizados para explicar a relação das massas com esse fenômeno: o de determinadas perspectivas psicanalíticas (ou a chamada psicologia de massas), por desconsiderar os condicionamentos de natureza econômica; e o que se atém exclusivamente ao primado da linguagem fascista, como ocorre com Jean-Pierre Faye, designadamente no seu livro «Introdução às linguagens totalitárias». Neste último caso, há, por exemplo, um desprezo analítico pela efetiva materialidade onde os discursos são produzidos. Do que se trata, para entender como as massas são envolvidas pelo fascismo, é de ter em atenção que o mesmo mobiliza uma complexa composição de classes, grupos e segmentos sociais antagônicos, desenvolvendo uma diversidade de estratégias que, além da homogeneidade discursiva, promove uma unidade complexa de pessoas – atravessada por contradições – que lhe permite levar adiante o seu projeto político. Explica-se, assim, que pessoas ditas cristãs, contraditoriamente, se coloquem ao lado de quem defende a violência contra adversários e faz a apologia da morte.
Espectros do fascismo. Saudar e promover a morte são atitudes básicas do fascismo. A morte no sentido mais profundo, a morte como condenação ao esquecimento eterno. O desaparecimento total. Foi assim com o nazismo, e está sendo assim com os fascismos atuais. Por exemplo, o assassinato de Marielle Franco – vereadora da cidade do Rio de Janeiro – e o ocorrido recentemente com uma placa em sua homenagem constituem fatos paradigmáticos a este respeito. No tocante à placa, a análise antropológica feita pelo já referido Luiz Eduardo Soares é lapidar: “Dois homens fortes e sorridentes, usando camisetas com a estampa de Bolsonaro, erguem, orgulhosamente, a placa de rua com o nome de Marielle. Mas não se trata de homenagem. A placa foi partida ao meio. Os dois homens se vangloriam como quem levanta um troféu. Em o fazendo, transmitem uma mensagem mais profunda do que provavelmente supõem: ao quebrar a placa que celebra a memória da vítima do mais horrendo dos crimes, o mais vil, o mais bárbaro, os dois saúdam a morte, a morte no sentido grego clássico, a morte como condenação ao esquecimento eterno. Por isso, em sua coreografia patética, capturada pela foto, assassinam Marielle pela segunda vez. Evocam sua memória para negá-la. Erguem a placa, retirada de seu lugar de origem, para destruí-la, deixando, entretanto, que permaneça identificável o nome, o nome agora dividido em duas partes, o nome que perde sentido, que vira silêncio. Fazem da placa uma lápide e da lápide partida o símbolo do esquecimento. Isso se chama profanação e promove a segunda morte de Marielle”. Sendo grande parte de nossas vidas norteada pelo que é invisível, também isso, em determinada medida, costuma acontecer na política. Dessa forma, não é necessário incluir formalmente no programa de governo de um candidato o extermínio, a defesa do genocídio e do ódio. A apologia à barbárie pode ser realizada de forma subliminar, fazendo circular na sociedade a mensagem de que adversários devem ser destruídos – no caso brasileiro, contudo, a defesa da barbárie tenha sido feita de forma direta e explícita. A autorização para eliminar opositores e críticos. Ao invés do debate democrático entre divergentes, a morte. Espectros do fascismo. Aos democratas, alinhados às mais diversas perspectivas, não resta outra alternativa senão – colocando de parte as divergências recíprocas – agir. Para que o desespero da verdade nua seja visto.
Ivonaldo Leite
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