É vulgar ouvirmos que as funções da Universidade são como um tripé, assente no ensino, na investigação e na extensão. Na verdade, nenhuma destas dimensões pode funcionar isoladamente.
Pensemos hoje, particularmente, sobre a ‘extensão’ veiculada por discursos ideológicos, políticos, didatistas e ávidos de mostrar a aplicabilidade do saber universitário como se de um sistema de vasos comunicantes se tratasse: uma cabeça cheia que despeja conhecimento para mentes vazias, para lembrar Michel de Montaigne (1533-1592) ou Paulo Freire (1921-1997). Emerge o orgulho de reitores e presidentes de politécnicos, que, provavelmente sem saberem muito das diferenças entre conhecimento e processo de conhecer, se orgulham discursivamente das suas valências e gabinetes de transferência de conhecimento. Acreditam piamente que o conhecimento é produzido, armazenado e, depois, simplesmente vendido, entregue a comunidades e sociedade para que se atualizem, transformem, modernizem. Autismo e arrogância universitária. Vazio discursivo e vazio teórico-desenvolvimentista. O desenvolvimento é sempre endógeno, local, regional, nacional; de contrário não o é. Se o ‘desenvolvimento’ for exógeno, entramos no domínio da uniformização e da colonização cultural e no aumento da dependência, do envolvimento, ao invés do (des)envolvimento e consequente autonomia e empoderamento. Como dizia John Dewey, o conhecimento é exterior, mas o ato de conhecer é interior e implica um trabalho de apropriação, de autoconstrução sobre um background de saberes e de sentidos. Um trabalho bilateral, de mediação intercultural entre a instituição de ensino e os sujeitos, os grupos e ou as comunidades. De vinculação, portanto, e não de extensão versus receção.
Mudar as práticas. Esta matéria está muito presente em toda a obra de Paulo Freire, na ousadia de construir pedagogias da autonomização. Na sua obra de 1969, «Extensão ou comunicação?», Freire já tinha proposto o termo de ‘comunicação’ como marcando uma dimensão biunívoca, interativa e mediadora, necessária ao desenvolvimento, ao contrário da extensão que remete para relações monistas, mecanicistas, unidirecionais e impositivas. Relações assimétricas de superioridade do saber, autoafirmadas por quem entrega, e de posturas de inferioridade cultural dos que recebem, uma inferioridade heteroconstruída pelos invasores culturais, apetrechados com a neutralidade e o objetivismo do neopositivismo, incorporados nas fórmulas mágicas de coaching para mudar o mundo com que alguns tecnocratas, engenheiros, gestores e políticos invadem a especificidade da epistemologia das ciências sociais, talvez sem darem conta disso. Urge não só mudar as práticas da relação das universidades com a sua envolvente, mas também os próprios discursos, a começar pelo nome das coisas que espelha a filosofia dominante na materialização do referido tripé universitário, adjetivado cada vez mais, no século XXI, de inovação (à qual chamam de inovação social, confundindo-a com inovação tecnológica), matéria que exploraremos na próxima edição.
Ricardo Vieira e Ana Vieira
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