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Escola e Democracia: esboço para um debate à esquerda

As medidas de política curricular e pedagógica que o atual governo promoveu são medidas que se saúdam porque contribuem para que as escolas se afirmem como espaços tendencialmente mais democráticos.

Não é possível negar o quanto Portugal beneficiou, a nível do desenvolvimento do sistema educativo, com a Revolução de Abril. Comparem-se os números do analfabetismo e os baixos níveis de escolaridade da população antes de 1974 com a situação atual e constata-se que, também do ponto de vista da oferta educativa das escolas, estamos perante um país bem melhor e completamente diferente.
É este legado que não podemos menosprezar quando refletimos sobre os desafios do presente e do futuro, sabendo que, hoje, as escolas portuguesas são entidades mais inclusivas, ainda que não sejam tão inclusivas quanto deveriam ser as escolas que, no século XXI, têm de responder às exigências de um tempo onde, mais do que nunca, é necessário entender-se que a literacia política e cultural dos cidadãos – de todos os cidadãos – é um desafio de vida ou de morte. Longe de nós responsabilizarmos apenas a Escola por um tal desafio; longe de nós, também, considerarmos que este desafio é algo que não diz respeito à Escola.
É por isso que consideramos que as medidas de política curricular e pedagógica que o atual governo promoveu são medidas que se saúdam já que, ao poderem contribuir para que as escolas se assumam como entidades culturalmente mais significativas, quer para os alunos quer para os professores, contribuem, afinal, para que as escolas se afirmem como espaços tendencialmente mais democráticos.
Há quem discorde, argumentando que uma sociedade como aquela em que vivemos, democraticamente tão deficitária, impede desde logo uma tal possibilidade. Há quem discorde, também, considerando que a evolução do desempenho dos estudantes portugueses nas provas do PISA, ou mesmo o decréscimo dos números do insucesso e do abandono escolares, particularmente ao nível do Ensino Básico, permitem afirmar que os decretos-lei no 54 e no 55, de 2018, não servem para nada, a não ser para infernizar a vida dos docentes, porque os professores portugueses, defende-se, há muito que fazem o que se prevê nos novos normativos, sem que os ministérios da Educação sejam capazes de o valorizar. Perante estes argumentos diríamos que estamos perante dois tipos distintos de objeções, que merecem respostas distintas.

Obstáculo à democratização. Estando nós de acordo que uma democracia de baixa intensidade (palavras de Boaventura de Sousa Santos) é um obstáculo à afirmação de uma Escola mais democrática, defendemos, no entanto, que as respostas a construir nos obrigam a reconhecer que o empobrecimento da vida democrática é algo que não poderá ser imputado, apenas, à ação dos governantes. É que há cumplicidades de outros atores educativos, nomeadamente de professores, que não poderão continuar a ser escamoteadas, quanto mais não seja porque o contributo para a afirmação de uma vida comum mais plena e gratificante está longe de poder ser considerado um desejo amplamente consensual nas sociedades em que vivemos.
No caso dos professores, não acreditamos que todos estejam interessados em pugnar por uma escola mais democrática, o que, politicamente, é algo não só expectável como até aceitável. O que nos custa é que gente que se assume, através de palavras e atos, pela sua militância no campo da esquerda política possa constituir-se como um obstáculo à democratização da Escola quando tende a deixar de fora da equação a reflexão sobre a gestão curricular, os processos de interlocução pedagógicas ou as conceções e práticas de avaliação, como se as decisões sobre o que se aprende, como se aprende e como se avalia, não fossem operações que têm vindo a contribuir, à sua maneira, para a manutenção de uma ordem política, social e cultural que, de facto, é congruente com a democracia de baixa intensidade a que atrás nos referimos.
Dito isto, estamos em condições de responder a quem defende que as escolas portuguesas já obtiveram os resultados positivos suficientes para não terem que se preocupar com a necessidade de promover qualquer tipo de mudança ou de inovação. Basta ler os relatórios de análise dos desempenhos dos alunos nos exames nacionais, da autoria do Instituto de Avaliação Educativa (IAVE), para se constatar como a utilização da informação para argumentar e as dificuldades na definição de estratégias que permitam resolver problemas ou no relacionamento de ideias e perspetivas, constituem vulnerabilidades que afetam o desempenho dos alunos, mesmo daqueles que não manifestam qualquer tipo de dificuldades de aprendizagem – importa afirmar que, se referimos somente os relatórios do IAVE, é porque nos faltam estudos produzidos pelas próprias escolas, que coletem evidências capazes de contestar tais conclusões ou de demonstrar porque é que as mesmas estão erradas.

Descredibilização e desinformação. Face a estes dados, não compreendemos a oposição ou o silêncio perante as medidas políticas de caráter curricular e pedagógico promovidas pelo atual governo, que a esquerda à esquerda do PS tem vindo a adotar. É que uma coisa é defender que tais medidas são incompatíveis, do ponto de vista do que se exige aos professores, com as políticas adotadas pelo mesmo governo no que diz respeito à gestão da carreira docente; outra coisa é apoucar o decreto-lei no 54/2018, considerando que este visa contribuir para uma escola alegadamente inclusiva, ainda que, logo em seguida, se defenda que a sua entrada em vigor deveria ser adiada.
O que se pretende com esse adiamento? Quais as vantagens da preservação do DL no 3/2008? Porque não se admite que a entrada em vigor de qualquer normativo legal pressupõe um tempo de apropriação que só faz sentido depois do mesmo ser promulgado?
A contestação ao Decreto-Lei no 55/2018 afina pelo mesmo diapasão, quando se acusa o projeto de flexibilização curricular, que o sustenta, de ser uma estratégia capciosa de favorecer a municipalização das escolas. Se a invocação dos problemas com a carreira e as condições de trabalho dos professores pode ser entendida como base expectável de um processo de contestação congruente, já o processo de descredibilização dos normativos mencionados, nos termos em que é feito, não passa de uma campanha de desinformação, vazia de conteúdo e moralmente obsoleta, sobretudo da parte de quem deveria saber que hoje continua a ser “de extrema importância atenuar, tanto quanto possível, as consequências ‘vitalícias’ do veredicto escolar e impedir que o sucesso tenha um efeito de consagração ou o fracasso um efeito de condenação sem apelo” – palavras escritas por Pierre Bourdieu, em 1987, nas suas Propostas Para o Ensino do Futuro; um texto que merece ser (re)lido, para que se compreenda que a luta por uma sociedade mais justa e inclusiva é uma luta que não pode deixar a sala de aula de fora nem o que aí se faz, “para dar aos mais desfavorecidos boas condições de formação e contrariar todos os mecanismos que conduzem a colocá-los nas piores”.

Ariana Cosme e Rui Trindade


  
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