O professor da escola primária no tempo do Estado Novo é, talvez mais do que os professores de hoje, uma referência marcante no percurso de vida de cada um. Hoje, não têm a mesma centralidade, poder e autoridade dos professores da velha escola.
Aos 95 anos, morreu em outubro o meu professor da escola primária. A notícia circulou nas redes sociais próximas entre os seus ex-alunos ao longo de mais de 30 anos na mesma escola. Já reformado, numa carta aos seus antigos alunos escreveu “se um dia me quiserdes dedicar alguns segundos do vosso precioso tempo, preenchei-o numa crítica aberta”. Além da minha sentida homenagem, é com essa atitude que escrevo este breve texto – um olhar aberto e sem anacronismos na apreciação do que era esperado de um professor, como o meu, numa escola rural nos tempos do Estado Novo. Na sequência de uma visita ao professor Guilherme, já reformado na sua aldeia (Folgosinho), escrevi nesta revista (inverno de 2015) que o/a professor/a da escola primária no tempo do Estado Novo é, talvez mais do que os professores de hoje, uma referência marcante no percurso de vida de cada um. Estes não têm a mesma centralidade, poder e autoridade dos professores da velha escola. Os contextos e os tempos não são comparáveis. Em democracia, o imperativo de educar para a igualdade em contextos globalizados, de massas e de grande diversidade, tornam a profissão docente mais complexa, descontínua, diluída e, talvez, mais exigente; ocorre em contextos democráticos e, por isso, mais colaborativos, interdependentes e mutáveis. Nos pequenos universos rurais do tempo do Estado Novo, fechados e socialmente controlados, o professor, a par com o padre e o cabo da GNR, tinha autoridade, com poderes e funções ideologicamente comandadas que cercavam as socializações dentro de exíguos espaços que não admitiam transgressões. Embora o ambiente e as interações pedagógicas nessa escola raramente deixassem boas memórias, porque nos comprimiam entre o receituário ideológico, educativo e pedagógico do Estado Novo e a vida por nós desejada, o professor nunca ficou perdido na nossa memória – tornou-se um outro muito significativo; uma memória presente que nos vai transportando à escola desse tempo. Para a esmagadora maioria, era a escola única, o que a tornava mais marcante, mesmo que para alguns tivesse sido a escola incompleta, ou mesmo a escola ausente.
Figura significativa. Ao longo de muitos anos, a propósito de muitas circunstâncias da vida, revisitámos, com uma mistura de boas e algumas más memórias, o tempo da escola e dos seus atores. Naquela visita ao professor Guilherme, não falámos do contexto social e político da nossa escola, nem relembrámos como se ensinava e como se aprendia; não comparámos a escola daquele tempo com a de hoje. A sua atitude revelava que foi, em toda a plenitude e com muito orgulho, um bom professor daquele tempo, com aquelas condições políticas, sociais, pedagógicas e educativas, que ele provavelmente não admitia poderem ser outras. E nessas circunstâncias foi, sem dúvida, um grande senhor e um bom professor. Além das expressões de condolências pela morte do velho professor, as dezenas de mensagens que circularam nas redes sociais exprimiam aquela ideia de figura significativa nas respetivas vidas, pese embora as duras condições da escola daquele tempo. Repetiram-se expressões como “um grande senhor”, “um grande cidadão”, “uma grande figura”, “uma grande referência da minha infância”; “um professor com autoridade e dedicação”, “dedicado à causa do ensino”, “foi o melhor professor”; “marcou gerações”, “sem ele a vida de muitos de nós não teria sido o que foi”; “castigava mas era a única maneira de aprendermos em pouco tempo”, “quando tirava o casaco... ui, ui, ui, lá saia da secretária a menina dos 5 olhos”... Também eu conheci bem a sua ‘menina de 5 olhos’, que julgo nem sempre mereci confrontar. Esses encontros foram esquecidos e ficaram muitas outras razões que fizeram dele um tipo inesquecível e um grande professor. Muito obrigado, professor Guilherme. Descanse em paz!
Carlos Cardoso
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