O ‘saber lidar’ promana de uma experiência pessoal intimamente enriquecedora no plano comunicacional. Sem essa inteligência prática, o professor encontra-se desarmado perante a imprevisibilidade que constitui o seu quotidiano nos dias de hoje.
De há uns tempos a esta parte, tem-se tornado objeto de referência com alguma regularidade, nos meios de comunicação nacionais, uma notícia preocupante para a profissão docente portuguesa – de acordo com um estudo elaborado para o Conselho Nacional da Educação (CNE) junto dos alunos que em 2015 foram sujeitos aos testes PISA [programa internacional de avaliação de alunos], só 1,5% admitem suceder aos 2/3 dos docentes que se vão reformar até 2032. Esta notícia é complementada por uma nota igualmente preocupante: é que essa percentagem insignificante (e por isso tão significativa) corresponde aos alunos situados na tabela classificativa abaixo da média geral. Não é possível ficar indiferente a estes dados. O que salta de imediato à mente mais desprevenida é que estamos perante uma profissão profundamente desvalorizada. A desvalorização não seria, entretanto, tão determinante da sua importância social se os seus efeitos se reduzissem apenas aos portadores dos seus títulos, como espontaneamente se é tentado a crer. Mas é preciso ter-se perdido toda a sensibilidade ética, cultural e política para admitir que a profissão docente é uma questão que apenas diz respeito aos titulares da profissão. Alguns notáveis com responsabilidade política e administrativa já tentaram explicar a situação recorrendo à pouca exigência da formação inerente aos cursos da formação, de que resultaria a desqualificação académica dos futuros profissionais e, logo, o seu desinteresse pessoal. Atendendo à realidade concreta de certas instituições de formação, não se pode negar que haja algum fundo de verdade nesta afirmação, mas se ela pode explicar algo deste fenómeno, com alguma ironia se poderia admitir que lhe caberiam os 1,5% dos que se dizem disponíveis no estudo do CNE. E como explicar a ausência de ‘vocação’ da restante quase totalidade da população escolar de 15 anos? Não é por acaso, evidentemente, que os responsáveis do sistema educativo procuram assacar as culpas aos processos e instituições de formação. A vantagem imediata que daí resulta é a desculpabilização de todas as medidas políticas e financeiras que têm vindo a tornar o campo profissional da educação eriçado de penas, riscos e frustrações. Não é só a perda de salário, mas o aumento sistemático de responsabilidades e de encargos que se confrontam com novos desafios e novas funcionalidades. Como diz Ricardo Paes Mamede (Diário de Notícias, 12.07.2018), “os professores de hoje não só trabalham mais e recebem menos do que no passado, como fazem as vezes dos psicólogos, dos assistentes sociais, dos mediadores culturais e familiares, dos orientadores profissionais e dos funcionários administrativos que o Estado não garante e que as escolas não podem pagar”.
Reabilitar condições. É aqui que se exprime, hoje, a real dimensão da profissão docente face às profundas transformações que afetam a escola dos nossos dias, e é neste contexto que se configura como um verdadeiro drama social a desertificação do espaço ‘vocacional’ do futuro dos docentes. Importa assumir e contrariar a todo o custo essa desertificação à medida que é cada vez mais evidente que o exercício profissional dos docentes os torna expostos a um paradoxo crescente, como está patente neste depoimento de uma experimentada professora: “Cumprirá a Escola as suas tarefas?... Só o consegue em relação a uma minoria. Os outros, quando ainda eram poucos, frequentemente ouvia-se dizer ‘não andavam cá fazer nada’. Só agora é que estes alunos começam a merecer atenção, porque os professores, aflitos, não sabem lidar com eles nem com a sua indisciplina”. É este ‘saber lidar’ que verdadeiramente constitui o caráter ‘vocacional’ da profissão docente, já que a sua aquisição promana de uma experiência pessoal intimamente enriquecedora no plano comunicacional. Sem a vivência desta experiência não se tem acesso a este ‘saber’, a esta ‘inteligência prática’, cujo desenvolvimento passa, necessariamente, por uma temporalidade percetiva em ato substancialmente diferente do raciocínio lógico que implica, apenas, uma anterioridade abstrata. Sem esta inteligência prática, o professor encontra-se desarmado perante a permanente imprevisibilidade da ação que constitui o seu quotidiano nos dias de hoje. Como diria uma outra colega: “O professor passa muito por se pôr em causa nas suas metodologias, nas suas maneiras de trabalhar diariamente; isso passa pelas pessoas às vezes terem, eu não lhe queria chamar carolice, mas às vezes isso obriga as pessoas a implicarem-se nas coisas e a implicarem-se de outra maneira sem ser propriamente vir cá dar a aulinha”. Ora, aqui temos, talvez, a melhor expressão para a ‘vocação’ — carolice, aquilo que “obriga as pessoas a implicarem-se nas coisas e a implicarem-se de outra maneira”. Como cultivar e desenvolver esta carolice indispensável à dignificação da profissão docente pela humanização que tem de ir muito para além da “aulinha”? A reabilitação das condições materiais impõe-se, obviamente, mas igualmente determinante, temos a necessidade de regeneração das relações sócio-institucionais e pedagógicas do contexto escolar. Não há dúvida de que estes 1,5% de ‘vocações’ para a profissão docente é a mais cruel expressão da vida atual das escolas...
Manuel Matos
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