Diz-se que a poesia é, de todas as formas da língua, a mais irredutível à tradução. Ligada de uma forma muito material à morfossintaxe e ainda mais à fonética de uma língua, a poesia está, além do mais, restringida por sistemas prosódicos específicos.
Afirmar que a poesia é, literalmente, intraduzível é enunciar um postulado irrefutável e, quando abordamos com os alunos um texto traduzido, devemos ter sempre presente este postulado. Quando, a partir de uma tradução literal, um grande poeta restitui, com efeito, a música que ouve, está a abrir caminho a uma abordagem fascinante de um mundo poético diferente que certas pessoas terão talvez o desejo de descobrir e de conhecer plenamente, aprendendo a língua do original. E depois, na nossa época, em que os homens de culturas diferentes se procuram, se estranham ou, até mesmo, se odeiam e, sobretudo, se ignoram, apesar das viagens e dos contatos à nossa disposição, o conhecimento, ainda que imperfeito, da poesia vinda de outros lugares é sempre um elemento de compreensão recíproca, de aproximação e de partilha. Há uma exigência bastante crucial no ato da tradução do texto poético: a do duplo domínio do idioma para o qual se irá realizar a tradução e do idioma em que se encontra escrito o texto a ser traduzido. São as assim designadas, respetivamente, língua de chegada e língua de partida. Talvez o erro capital neste ponto seja o fato de que, de um modo geral, saber o tradutor o seu próprio idioma nacional é considerado com o devido apreço, muito embora seja verdade que a ninguém é concedido o miraculoso privilégio de bem conhecer uma língua estrangeira sem conhecer a sua própria. Aliás, pelas oportunidades e confrontos vocabulares e sintáticos que oferece, a tradução transforma-se num veículo de notável eficácia para o conhecimento da própria língua nacional. Sempre se poderá traduzir o que um poeta quis dizer. E o que significa isso? Significa, em termos genéricos, fazer que ele consiga falar no idioma para o qual foi traduzido mediante uma trama de operações que privilegiem as correspondências sintático-verbais, que resgate a música das palavras e das ideias do autor traduzido e que, afinal, transmita a atmosfera e, mais do que isso, o espírito da obra que se trasladou para a outra língua.
Resgate de equivalências. A tradução de poesia é também, sob certos aspetos, um proveitoso exercício de crítica paralela, pois a todo instante esse ato lúdico em que se envolve o tradutor – ou o recriador – está diante do complexo e multifacetado problema da escolha, dessa escolha que se processa no plano do significado e do significante, o que envolve opções semânticas, fonéticas, morfológicas, sintáticas, prosódicas, rítmicas, métricas, rítmicas, estróficas – enfim, um espectro ambíguo e infinito constituído pelas chamadas figuras de linguagem. Outra questão a ser abordada na tradução de poesia reside no fato de que, ao lidar com duas línguas, o tradutor está mais sujeito do que qualquer outro intelectual a contaminar-se e a contaminar o idioma para o qual está fazendo a tradução. Essa contaminação, ou estranhamento, pode ocorrer, sem dúvida, entre a língua do tradutor e qualquer outra com a qual esteja lidando, mas, nos tempos que correm, o idioma que envolve mais desafios é o inglês, por ser o veículo de expressão universal em razão de vários motivos, entre os quais o fato de ser a língua nacional de povos muito poderosos do ponto de vista cultural, literário, econômico, científico e tecnológico. A rigor e sem exagero, a tradução exige esforço mais extenso e intenso do que a criação propriamente dita, sobretudo quando se trata do traslado de textos poéticos. Além do mais resta ainda ao tradutor o desafio de interpretar o pensamento do autor, sem falar nos problemas de atmosfera poética, que é necessário recriar em outra língua, e, intimamente vinculado a esses, o da escolha do vocabulário, pois há palavras que podem suscitar uma sugestão poética em determinada língua e em outras não, caso se trate de uma tradução literal. É nesse resgate de equivalências que reside o mérito de qualquer tradução. E pode-se dizer, até, que a maior virtude de qualquer espécie de tradução é não dar nunca a impressão de que o foi.
José Miguel Lopes
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