Na reunião de professores em que criticou as aulas prontas ficou muito mal vista. Parece que ninguém, além dela, conseguia olhar para o esvaziamento do trabalho docente, reduzido a controlar a disciplina e o tempo que os alunos levavam para realizar as tarefas previstas.
Manuela é professora de Matemática. Desde que se formou e foi aprovada em dois concursos públicos, há cerca de uma década, tem trabalhado em escolas da periferia da metrópole, além de uma instituição privada ao estilo caça-níqueis. Acumula cansaço inegável. Dá aulas demais, tem alunos demais e perspetivas de menos. Enquanto aguarda os alunos voltarem da aula de Educação Física, pensa nas dificuldades de aprendizagem daquele grupo específico. Em alguns poucos casos, consegue detetar a raiz dos problemas. Nos demais, precisaria se aproximar mais, ter contato mais estreito, coisas que as suas condições de trabalho não permitem. Mesmo quando identifica os problemas, não conta com a estrutura necessária ao seu enfrentamento. Como trabalhar com materiais variados para tantos alunos? Lembrou-se da pontinha de inveja que sentiu quando uma colega lhe contou sobre ensinar frações usando pizzas reais, que acabavam devoradas com muita alegria. Nem prestou atenção ao modo como as pizzas chegavam à sala de aula: eram feitas na cozinha da escola ou encomendadas numa pizzaria? De qualquer modo, um dia de pizza na sala era um acontecimento inimaginável nas condições em que trabalhava. Pensa nos alunos suados que entrarão dali a pouco na sala, sem o banho tão necessário, parecendo “vermelhos de raiva”: agitados, nervosos, impacientes. Pensa na aula que preparou já considerando tudo isso. Olha para o pen drive sobre a mesa, resultado da pesquisa feita no notebook que veio com a metáfora das janelas abertas para o mundo. Olha para o seu miniprojetor comprado com algum sacrifício e se pergunta se ele vai dar conta daquela sala enorme, sem cortinas. Torce para que sim.
Mais tem que ser mais. Abre a bolsa e se depara com outro pen drive. Ali estão atividades que as autoridades supõem sejam boas para todos os alunos e professores. Pensa na aposta de que as tecnologias da informação e da comunicação teriam todas as respostas. Lembra-se da reunião para apresentar, com muita pompa e circunstância, uma plataforma online, com todas as aulas prontas! Não era mais o hardware abrindo numerosos leques, mas o software trazendo as supostas soluções para todos os professores e alunos a partir do conteúdo e da série! Manuela pensa na expressão posta no título. Fica difícil conter o seu espanto de professora de Matemática. Mais igual a menos?! Como é que todas as respostas podem estar na plataforma? Por outro lado, se a avaliação vai ser externa, qual é o risco que se corre trabalhando outros conteúdos e materiais? Como é que a tecnologia pode ser usada para substituir o seu planejamento que pretende atender às necessidades que nem ela mesma conhece como gostaria? Ela é quem fica vermelha por um momento. Naquela reunião de professores em que criticou as aulas prontas, ficou muito mal vista. As colegas falaram do salário baixo, da peregrinação pelas escolas para sobreviver e do descanso que era encontrar tudo feito. Parece que ninguém além dela conseguia olhar para o esvaziamento do trabalho docente, reduzido à tarefa de controlar a disciplina e o tempo que os alunos levavam para realizar as tarefas previstas. Faltando dois minutos para os alunos entrarem, toma uma decisão: vai usar o que ela planejou! Pode ser que algum dia, depois de muita pressão, ela acabe projetando as aulas prontas. Mas, por enquanto, resiste! Afinal, não faria sentido jogar fora toda a sua formação e ficar ali silenciosamente em segundo plano, assim tipo coadjuvante, quase mera observadora? Respira fundo: mais tem que ser mais, não menos!
Raquel Goulart Barreto
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