Inquietações acerca de lacunas que, por descuido ou facilitismo, podem comprometer a democraticidade da educação, deixando de fora das preocupações formativas as condições imprescindíveis para uma real participação dos indivíduos na sociedade e para a realização da sua dignidade.
1. É evidente que quando se fala de incultura temos de ter bem presente o que se considera ser cultura. Sem nos prendermos aqui com os meandros do ancestral e persistente debate erudito a um tal propósito, sem nos determos, igualmente, na questão inerente à dicotomia cultura tradicional versus cultura tecnológica, limitar-nos-emos, com recurso a alguns casos e considerações, a esclarecer ao que nos queremos referir em concreto, bem como às preocupações que se nos levantam. Recordemos que a cidadania assume hoje em dia, com as redes de comunicação mediática e digital, com a facilidade de transportes, com os movimentos de populações e com a interdependência económica e política, uma inalienável dimensão universal que não pode ser ignorada. Importa, muito pelo contrário, mobilizar as suas potencialidades e suturar as zonas de especial fragilidade suscetíveis de gerarem conflitos e violências, ao invés de proporcionarem renovadas razões de abertura crítica e tolerância. Acontece que tais propósitos carecem desde logo de um conhecimento de outras identidades e visões do mundo e, com estas, das forças e fragilidades que nos podem tornar mais próximos, em vez de irremediavelmente nos afastarem. Ora, com os nossos jovens, de uma geração que alcançou o direito de ir à escola durante doze anos, o que é também um privilégio ao ser raro por esse mundo fora, está longe de ser claro que, na sua generalidade, tenham assimilado, durante esse percurso, um conhecimento consolidado, por exemplo, acerca da história e da geografia dos povos que constituem o mosaico humano a que pertencem, o qual é, afinal, a nossa casa coletiva. E, sendo assim, como poderão, enquanto jovens e enquanto adultos, exercer a sua cidadania plena?
2. Poderemos aceitar que não tem consequências relevantes no quotidiano dos círculos da nossa convivência desconhecer, por exemplo, como parece ser frequente, as razões e o impacto de um episódio como a revolução francesa que marcou indelevelmente na história a rutura com as noções tradicionais de legitimidade do poder e a emergência, ainda que contraditória, da utopia dos direitos humanos? Como será possível ter uma representação lúcida dos confrontos e cataclismos que pululam por todo o lado (como também das manifestações de envolvimento em grandes e pequenas causas), se, pura e simplesmente, se desconhecer a geografia física e política dos acontecimentos de que são sujeitos ou vítimas seres humanos? Será a este propósito irrelevante, para entender os contornos do que se está a passar, desconhecer, além da sua história, quais são as fronteiras e os países vizinhos mais ou menos próximos, por terra e por mar, da Coreia do Norte? E da Faixa de Gaza? E da Turquia?
3. Se passarmos ao terreno de referência das ciências físicas e biológicas, e implícito espaço das suas redes concetuais, percecionamos igualmente graves e comprometedoras carências. Acontece que a cidadania contemporânea é incompatível com a passividade diante do consumismo, inclusive ao nível da utilização massiva que se vai fazendo de tecnologias que a ciência proporciona e o mercado sugere. O mesmo acontece sempre que se trata de assumir ou resistir a decisões perante as quais é preciso um saber que esclareça o debate de ideias e de realizações em jogo, permitindo fazer escolhas conscientes. Mas como tomar posições ajustadas quando se fala de problemas de sobreaquecimento do planeta, da utilização de energias fósseis, de energias renováveis e, muito concretamente, da energia atómica, se se estiver refém de meros sentimentos espontâneos de medo ou de submissão diante da pressão dos faze versus dores de opinião? Como ponderar e intervir nos debates em torno da eutanásia ou do aborto, não sendo pura e simplesmente manipulado por ideologias, doutrinas ou convicções sem respaldo científico ou real suporte ético?
4. Como sobreviver enquanto cidadão sem conseguir selecionar e descodificar devidamente um bom número de mensagens que, direta e indiretamente, nos são dirigidas ou que procuramos? Como será possível aprofundar a cidadania pelo conhecimento, se se recusar sistematicamente os livros, os documentários e os espetáculos de qualidade? Como apurar a sensibilidade, que é dimensão integrante da nossa humanidade, se a fruição das expressões artísticas mais sofisticadas não fizer parte da formação desde a infância e da rotina de jovens e adultos? E, no percurso escolar, tudo culmina nas formações superiores que, em nome da especialização e das competências práticas, não valorizam os enquadramentos culturais que condicionam todos os saberes e competências... Não se trata aqui de cair em negativismos ou em generalizações precipitadas. Trata-se, somente, de partilhar inquietações acerca de lacunas que, efetivamente constatadas, podem, por descuido ou facilitismo, comprometer a democraticidade da educação ao deixar de fora das preocupações formativas aquelas que são, afinal, as condições imprescindíveis para uma real participação dos indivíduos na sociedade (como cidadãos e como pessoas), bem como para a realização da sua dignidade.
Adalberto Dias de Carvalho
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