Quando, no verão agitado que assolou todas as estâncias do nosso país, procurava um assunto capaz de interessar, no inverno, os eventuais leitores deste espaço da PÁGINA, dei com um artigo no jornal Público que não terá atraído a atenção do leitor comum, apesar do título retumbante: O fim do mundo é tão complicado como parece.
Eu tinha em reserva a ideia de abordar a questão educativa nacional, pela quase ausência das Letras e Humanidades dos planos curriculares, quando me surge aquele artigo, assinado por Mariana Duarte, e, nele, a informação de duas conferências a realizar em Lisboa e Guimarães tendo como tema central o que para a grande maioria dos leitores de jornais diários seria insólito: o Antropoceno. À primeira vista, este tema remeteria para as alterações geológicas e climáticas que se têm verificado em todo o mundo, com consequências que para muitos povos se representaram por verdadeiros caos sociais. Nem é preciso referir as tempestades, furacões e sismos que nos últimos tempos têm assolado o nosso planeta, de Norte a Sul, de Leste a Oeste, sem se confundirem com as ações criminosas de quem, por índole, negligência ou interesse, provoca hecatombes. Neste ponto, o verão português, marcado por incêndios clamorosos, que dizimaram dezenas de vidas humanas, milhares de reses e terrenos de cultivo e pastagem, deve ser considerado um case study, por vários motivos que convergem para o mesmo resultado catastrófico: uns, em que a ação do Homem se mede com a Natureza, ora vencendo-a, ora capitulando; outros, em que a inação do Homem é consequência da sua impreparação ética, técnica e cultural para fazer face a desafios da mesma Natureza.
Poderíamos dizer que foi sempre assim, já que antes de haver história havia seres humanos. Ou porque, como diz um velho provérbio quimbundo, respigado do livro «Missosso», de Óscar Ribas, “o que ensina a vida nem a escola se lhe compara”. Só que desde que há Escola e se escreve a história definem-se causas e responsabilidades: as que se reportam à Natureza, como ela é, e ao Homem, como a negligencia, transforma ou destrói, por ignorância, inaptidão ou interesse. Como simples lembrança, veja-se como é destruída a biodiversidade em África, devastando florestas para negociar madeiras nobres; ou a floresta amazónica, no Brasil ainda indígena, sendo considerada um pulmão da humanidade. Embora e porque à Escola caiba o recurso à última palavra, ela não está imune à ‘manipulação’ de quem tem o poder de a submeter aos desígnios materiais – diga-se políticos, económicos e financeiros – do momento, em nome de pretensas razões como as do progresso, desenvolvimento e empregabilidade. Mas se no fim fizermos as contas do que, ao longo dos anos, na base programática da Escola, ajustada aos tempos (Santo Agostinho disse que o tempo é o espaço onde decorrem as coisas) foi omisso, reconvertido ou acrescentado, veremos que neste ‘espaço’ uns ganharam e outros perderam, se não mesmo, uns perderam para outros ganharem.
Não nos deixemos iludir com os falsos pressupostos da ‘educação necessária’ para conseguir um diploma que dará ou não emprego. De acordo com o professor italiano Nuccio Ordine, em conferência realizada em Lisboa, a convite da Fundação Francisco Manuel dos Santos, sendo um dos tópicos o seu livro «A Utilidade do Inútil», traduzido em 20 línguas: “Hoje, as escolas e as universidades preparam os alunos para seguirem uma especialização. (...) A escola não pode ser uma empresa porque a lógica da educação não é a do mercado. (...) Temos gente superespecializada e que perdeu o sentido geral e global do saber. (...) Há uma visão utilitarista da educação que mata a ideia de escola. Vamos à escola para sermos pessoas cultas! Para sermos pessoas melhores, para sermos éticos, não importa o curso. (...) Significa que devemos estudar por amor ao conhecimento e à aprendizagem, para que sejamos livres. Os alunos têm de compreender que não há saber sem conhecimento e que só se é livre se formos sábios.” Alegam os mercantilistas que a Escola deve corresponder às exigências do mercado desenvolvendo a ciência necessária. Questionamos nós: necessária para conseguir o menor custo do desenvolvimento no consumo, recorrendo inclusivamente à inteligência artificial para substituir o trabalhador humano pelo robô? Entretanto, o Fórum Económico Mundial previu que os avanços da robótica podem provocar, até 2020, o desemprego de cinco milhões de profissionais e a Universidade de Oxford admitiu que 47% dos empregos de hoje deixarão de existir dentro de 25 anos. Voltando ao tema inicial: não seriam os robôs e a inteligência artificial capazes de evitar e apagar os pavorosos incêndios do nosso verão de descontentamento. O que lá faltou foi, no geral, mas sobretudo nas aldeias, a eficácia de uma educação básica e resiliente que contemplasse matéria da escola secular das artes e ofícios, com a qual populações e governantes aprenderiam a reconhecer que salvando a sua casa estavam a salvar a Casa Comum.
Leonel Cosme
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