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Encruzilhadas

O projeto da autonomia e flexibilidade curricular assume um conjunto de riscos que é necessário correr para que as escolas se vinculem como espaços de formação pertinente e significativa, capazes de gerar aprendizagens sólidas e de contribuir para que os alunos se assumam humanamente mais capazes.

Na sequência da publicação do Despacho nº 5908, de 5 de julho de 2017, temos vindo a acompanhar a reflexão sobre o projeto da autonomia e flexibilidade curricular (PAFC) com alguma atenção, do mesmo modo que estivemos bastante atentos à discussão sobre as possibilidades de as escolas se afirmarem como espaços de inclusão escolar, na sequência da revogação do Decreto-Lei 3/2008.
Constatámos que houve entidades que, neste âmbito, intervieram de forma ativa e responsável, mas importa reconhecer que nos deparámos, também, com intervenções que, em vez de serem parte da solução, passaram a constituir-se como parte do problema, o que poderá ser explicado quer como a expressão de resistência a uma mudança que não se deseja, quer como o resultado de decisões estratégicas inconsequentes.
Se não negamos a possibilidade de, num país dito democrático, se lutar contra as mudanças indesejáveis, não nos parece, contudo, que seja aceitável fazê-lo sonegando-se informações, martelando outras ou ocultando deliberadamente os pressupostos que sustentam os argumentos propostos.
Foi o caso do ex-presidente do Conselho Nacional de Educação, que num debate televisivo afirmou de forma perentória que, enquanto na Finlândia a reforma curricular se encontrava em curso há dez anos, o tempo que se prevê para uma reforma dessa natureza, em Portugal, seria apenas dez meses.
Não vamos perguntar porque é que David Justino nada disse acerca da reforma curricular promovida por Nuno Crato, essa sim, uma reforma curricular de fundo, quanto mais não seja porque sabemos qual é a resposta. Mas inquirimos porque se insiste em falar do PAFC como uma reforma, quando de facto não o é, ainda que se admita que poderemos estar perante o seu embrião.

Argumentos estranhos. De um quadrante político diferente, próximo daquele que é o nosso, as intervenções que visam criticar as novas propostas curriculares e pedagógicas do Ministério da Educação assumem outros contornos, apesar de, por vezes, as razões e as justificações invocadas nos suscitarem muitas dúvidas.
Há dois argumentos, sobretudo, que temos alguma dificuldade em entender, tendo em conta que são estranhos vindos de quem se situa à esquerda do espectro político.
Falamos da acusação que considera que o PAFC pode pôr em causa a igualdade dos alunos portugueses no acesso ao currículo nacional, apesar de se reconhecer que um tal princípio, dada a diferenciação dos públicos que hoje habitam as nossas escolas, não implica que esse currículo nacional seja à prova de professores e de alunos.
É verdade que há riscos que não poderemos iludir quando as escolas, os seus docentes e os seus alunos podem tomar decisões de natureza curricular, sendo necessário, no entanto, responder a duas questões:
a) como se compatibiliza uma tal desconfiança com a afirmação reiterada da importância da autonomia das escolas, reivindicação consensual no campo daqueles que desejam uma escola congruente com os princípios e valores da vida em sociedades democráticas?
b) até que ponto a implementação do PAFC põe em causa a igualdade de acesso ao currículo nacional, quando vemos que é a gestão de tipo burocrático, determinada muitas vezes pelas atividades dos manuais escolares, que põe em causa uma tal possibilidade?
A outra acusação diz respeito à possibilidade de o PAFC poder contribuir para a desintelectualização da Escola, no momento em que se sacrificam as disciplinas vinculadas aos saberes ditos tradicionais ao desenvolvimento de competências que tenderiam a subvalorizar estes mesmos saberes.
Mais uma vez, não poderemos subestimar essa possibilidade, ainda que seja necessário considerar, de imediato, que a PAFC não aponta para uma tal opção. Por outro lado, um olhar retrospetivo permite-nos considerar que não é a valorização daquelas disciplinas que, só por si, garante que as escolas possam ser consideradas como espaços de trabalho intelectual ou de produção cultural, tendo em conta que a perspetiva instrucionista e a visão curricular fragmentada têm estado na origem de um processo de caricaturar os saberes de referência, os quais, nalguns casos, se transformam mesmo em obstáculos epistemológicos à apropriação dos saberes originais.

Novos sentidos. Em suma, o PAFC é um projeto onde se assume um conjunto de riscos que, na nossa opinião, é necessário correr para que as escolas se possam assumir como espaços de formação pertinente e significativa, capazes de gerar aprendizagens sólidas e, concomitantemente, contribuir para que os seus alunos se assumam como pessoas humanamente mais capazes.
Em nosso entender, o facto de se argumentar que o modelo de gestão das escolas é um obstáculo que impede uma tal possibilidade é um erro estratégico, mesmo que tenha de se reconhecer que o caudilhismo de alguns diretores é um problema que não poderemos iludir. No entanto, se faz sentido reivindicar um modelo de gestão que implique um maior nível de participação dos professores na gestão dos projetos de ação educativa que têm lugar nas escolas, não faz sentido recusar, a pretexto desta reivindicação, as potencialidades de um projeto como o PAFC.
O PAFC pode ser uma oportunidade para que, tanto os alunos como os professores, encontrem novos sentidos para o que fazem nas escolas, o que significa que, em vez de se pôr em causa o PAFC, se devem identificar os obstáculos que poderão impedir a sua concretização.
O comportamento autocrático de alguns diretores pode ser um desses obstáculos, mas há que reconhecer que há outros, nomeadamente os que têm a ver com crenças e comportamentos de professores que preferem continuar trabalhar em salas de aula geridas de forma relacional e epistemologicamente autoritária – o que justifica que não tenham de planificar considerando as singularidades dos seus alunos e os desafios pessoais e culturais com que deverão ser confrontados; que possam continuar a ignorar a necessidade de diversificação de estratégias pedagógicas; ou, ainda, que possam continuar a organizar o processo de avaliação como instrumento que visa selecionar e hierarquizar o desempenho dos seus alunos.
Para nós, esta postura deixou de fazer sentido por algumas razões que já expostas, mas também por defendermos que a mesma é incongruente com os princípios e valores de quem reivindica a necessidade de nos empenharmos na luta pelo aprofundamento da democratização da sociedade portuguesa, admitindo, por isso, que existam setores que recusem um tal projeto. O ‘cratismo’ não foi, nem é, um epifenómeno ou um fenómeno aleatório e casuístico, assim como não pode ser circunscrito a um debate balizado apenas por preocupações educacionais, já que, expressando-se como ideologia pedagógica, é, em última análise, a manifestação de um projeto político que se identifica com a direita mais conservadora.
Dito isto, compreende-se que, na nossa perspetiva, o que está em jogo quando discutimos o PAFC não é tanto a salvaguarda de um projeto de ação curricular e pedagógica mais moderna, mas a afirmação da necessidade de nos envolvermos, por via da educação escolar, na construção de um projeto educacional mais democrático.

Ariana Cosme e Rui Trindade


  
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