Espera-se que propicie a compreensão do que significou o escravismo para quem teve e continua tendo lucros e benefícios, bem como para aqueles que foram ultrajados em sua humanidade, mas não pereceram e estão e exigir reparações.
Para a década 2015-2024, as Nações Unidas propuseram que se estabelecessem políticas públicas de interesse dos povos afrodescendentes, buscando garantir-lhes reconhecimento, justiça e desenvolvimento. O então secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, sobre essa determinação, assim se manifestou: “Devemos lembrar que os povos afrodescendentes estão entre os mais afetados pelo racismo. Muitas vezes, eles têm seus direitos básicos negados, como o acesso a serviços de saúde de qualidade e educação”. Em África, vive a maior parte das pessoas negras, que em 2010, contavam 800 milhões. Na América do Sul, na mesma data, 140 milhões eram afrodescendentes e nos Estados Unidos da América, 40 milhões. No Brasil, país onde vive a segunda maior população negra da humanidade, em 2014, se auto-declararam pretos ou pardos, ou seja negros, 96.795.294 pessoas, 54% da população. As sociedades, construídas por força do trabalho de escravizados, continuam a reproduzir o sistema mundo gerado, a partir do século XVI, pelos que se apropriaram de territórios, tentaram submeter povos originários, bem como escravizaram homens, mulheres e crianças africanas. Os traumatismos gerados dificultam, ainda hoje, as relações entre diferentes grupos sociais, notadamente étnico-raciais. O não reconhecimento dos jeitos de ser, de pensar a vida, de construir as relações entre as pessoas, com o meio ambiente, próprios a diferentes grupos sociais em suas culturas, tem incessantemente incentivado desigualdades, racismos, discriminações. Negros, os afrodescendentes, também povos indígenas, ciganos e demais comunidades tradicionais são vítimas de desigualdades, cultivadas por falta de reconhecimento, de respeito. O que é justo, bom, destaca Axel Honnet, precisa ser medido pela capacidade de serem asseguradas condições de recíproco reconhecimento, de maneira a garantir valorização das distintas identidades. Assim sendo, há que haver condições para cada pessoa se realizar, fundamentando-se tanto na convivência com suas raízes étnico-raciais como em intercâmbios com pessoas e grupos de outras origens. Isso exige que significações construídas em relações de racismo, de intolerâncias, sejam definitivamente desconstruídas.
Tarefa difícil. O desrespeito persistente contra afrodescendentes tem exigido que se estabeleçam políticas públicas. Assim, em 2001, a França, pela primeira vez na história do mundo ocidental, reconheceu o tráfico e a escravidão dos africanos, entre os séculos XVI e XIX, como crimes hediondos contra a humanidade e, recentemente, tem acolhido o reconhecimento de que o colonialismo foi e continua sendo crime. Para que o reconhecimento se efetive na letra da lei, comprometem-se os sistemas de educação, em seus diferentes níveis, da educação infantil ao nível superior. No Brasil, desde 2003, adotaram-se políticas nos sentidos de: - obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira, africana e dos povos indígenas; - definição de estatuto da igualdade racial; - combate à intolerância religiosa notadamente contra religiões afro-brasileiras; - reserva de vagas para ingresso de negros e de indígenas em universidades públicas federais; - cotas para negros em concursos públicos no âmbito federal. É sabido que leis não garantem justiça social, mas constrangem para que direitos passem a ser considerados. Atribui-se a escolas, universidades e seus professores, a difícil tarefa de educar para sua implantação. Difícil tarefa, pois leis que visam combater desigualdades põem em confronto projetos de sociedade distintos, quando não incompatíveis. Espera-se que a Década dos Afrodescendentes, tendo o suporte de políticas adotadas em diferentes países, propicie a compreensão do que significou o escravismo para quem teve e continua tendo lucros e benefícios, bem como para aqueles que foram ultrajados em sua humanidade, mas não pereceram e estão e exigir reparações.
Petronilha Silva
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