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Alienação

Nunca viveremos num mundo sem alienação. Precisamos dela para nos fazer esquecer as agruras da existência, os baixos salários, os desgostos que, inevitavelmente, vamos tendo ao longo da vida.

Henri Wallon disse, há muitos anos, que “o jogo é uma atividade cujo objetivo se esgota nele mesmo”. Nesse sentido, jogar às cartas com amigos, jogar futebol com vizinhos, jogar numa consola, são exemplos de jogo. Há jogos que podem fazer bem à saúde. Chamamos a muitos deles ‘desportos’ – ou ‘esportes’, no Brasil. Mas quando, para praticar essas atividades e melhorar performances, se tomam estimulantes, não estamos a falar de jogos; quando, para obter resultados ‘desportivos’, se contratam pessoas que não fazem mais nada na vida, a não ser jogar, levando com elas uma multidão de interesses (agentes, contratos milionários, tudo o que não é a feijões), não estamos perante ‘jogo’.
Normalmente, vemos estádios cheios de pessoas que não praticam desporto nenhum, mas dizem gostar muito de desporto. Os profissionais de desporto – ou melhor, de espetáculos desportivos – são muitas vezes pagos de forma escandalosa, porque a sua atividade serve para potenciar a publicidade, que, por sua vez, serve para provocar comportamentos de compra.
Neste mundo, tão oficialmente ‘racional’, é isto que temos. Médicos, políticos, profissionais de todos os tipos, vibram intensamente com a vitória do seu clube, não interessando como essa vitória se conseguiu.
Há imensas instalações desportivas em países com enorme dívida, como Portugal, ou em países sem hospitais suficientes, como o Brasil. Há, também, muitas pessoas ligadas a estes ‘desportos’ que tratam de contratos, comissões, compras e vendas de jogadores, como se estivéssemos em regime de compra de escravos. Há médicos, treinadores, public relations, profissionais de marketing, fisioterapeutas, gestores, economistas. Há até teóricos de ‘desporto’ que opinam na televisão, nos jornais, por toda a parte.
Essas pessoas multiplicam o espetáculo desportivo de tal modo que ele sucede de novo, não acaba nunca, enche as cabeças do povo.

Coisas sem importância. Em Portugal muito se falou na importância do futebol no tempo de Salazar. E hoje? Essa importância é muito maior! Que dizer do papel social de uma atividade que atrai ódios profundos e contribui para a divisão das pessoas, que nada produz de útil e que é tremendamente cara?
Há pessoas que vivem uma vida à custa destas atividades que não servem a cultura, o avanço científico, nem sequer as relações interpessoais. Essas pessoas são até vistas como heróis por aqueles que ajudam a distrair do que tem alguma importância, numa estranha relação de assumir a pobreza própria elogiando a riqueza dos ‘artistas’ de todos os tipos que orbitam este mundo.
Nunca viveremos num mundo sem alienação. Precisamos dela para nos fazer esquecer as agruras da existência, os baixos salários, os desgostos que, inevitavelmente, vamos tendo ao longo da vida. Mas para isso temos o cinema, o teatro, a música, a telenovela... Não precisamos da loucura e do culto da aberração.
É lamentável ver docentes de qualquer grau de ensino endoidecer com paixões por estas caricaturas horrendas de desporto, que era suposto dar-nos alma sã em corpo são. O que aqui está não é popular, mas é verdade. Por muito que possa incomodar, incomodará muito menos do que aqueles que são, de facto, incomodados pelos fanáticos dos ‘desportos’ que menciono.
Seria útil ver as autoridades distanciarem-se desta realidade. Seria positivo dar a essas atividades a sua verdadeira dimensão. Como disse uma vez um homem aos ‘desportos’, esses são as coisas mais importantes do mundo, de entre as que não têm importância nenhuma.

Carlos Mota


  
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