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Da identidade à consciência

A fronteira entre a identidade e a consciência será tudo quanto separa os nossos sentidos da compreensão dos significados do universo que eles apreendem. Entre a fatalidade identitária e a fatalidade da inconsciência pouco ou nada sobra.

Acerca da sua identidade, o comum das pessoas presume que ela está protegida por datas e documentos de lei que atestem do nascimento, do nome, do sexo, do estado civil, dos direitos e obrigações, da graduação académica e da profissão exercida. Nada mais insuficiente do que estes atributos para nos darem a perceção de quem, de facto, somos.
As experiências da infância, as deficiências congénitas ou adquiridas, o meio social que nos modelou a personalidade e a atitude perante o outro, o recalcamento da íntima liberdade de sonhar e realizar os objetos da vontade, são esses os verdadeiros fatores que podem explicar os nossos atos. Somos tudo quanto pensamos, verbalizamos e fazemos. E, em certa medida, o quanto devotamos ao reduto do silêncio: os nossos segredos.

O homem completo deve muito ao saber, apesar de não ser a sua instrução que lhe acrescenta às virtudes e aos defeitos do carácter.
O conhecimento do mundo que habita, da história da cidade, da nação, da civilização, da própria evolução das espécies e do chão onde fomos colonos milenares, permitem-lhe ter uma consciência do seu lugar na realidade que vive. A herança cultural da sociedade, do cidadão, por regra, fica na sombra da consciência.
Os hábitos mais vulgares têm responsáveis ignorados na ciência que os justifica, as simples normas da coabitação são resultado do trabalho e do diálogo em que não participou o indivíduo, esquecido ou não participativo por sua responsabilidade, a marca da pessoa sobre a realidade escapa-lhe por entre a monotonia do quotidiano. Todos peões, todos cegos, todos conformados com as agendas, os salários e as ementas que insistimos terem sido servidas pelo destino, resignados ante a ignorância que nos toca.
A fronteira entre a identidade e a consciência será tudo quanto separa os nossos sentidos da compreensão dos significados do universo que eles apreendem. Reféns do imediato, da nossa cultura pessoal e coletiva, clamamos por respostas para os problemas com os quais socialmente nos confrontamos, sem que tenhamos formulado as questões fundamentais: quem somos, o que nos une, que fraquezas temos de superar e, sobretudo, que desejamos para o futuro.

No domínio da escola, colocamos a tónica na notação do desempenho; na esfera laboral, na remuneração acima de tudo mais; na política, bastam-nos as urnas e a aclamação, enquanto rasuramos a gravidade de muitos atos ou na confissão, ou na absolvição dos tribunais. E reclamamos, de forma insistente, por todas as injustiças, nós, primeiros responsáveis pelo desinteresse no estudo, pela negligência na profissão, pelo alheamento da coisa pública.
A aceitação de uma vida sem passado coletivo, sem que se reconheça o palco onde ela se exibe, e onde a consciência dos personagens se limita ao texto que interpretam, fazem do indivíduo um carcereiro de si próprio e do seu semelhante. É aquele que não acredita em si mesmo, na imensa força da sua pessoa, que induz no outro o sentimento de impotência. A responsabilidade de decidir acerca do bem comum, não raro, frustra-se, porque o decisor é frustrado por natureza.

A condição social da pessoa completa a aparência da sua identidade, confirmando a possibilidade do exercício dos seus direitos ou negando-lhe a faculdade de os concretizar. A pobreza limita ou impossibilita a experiência material da liberdade, enquanto a pobreza que se não reconhece nas suas causas profundas aniquila a própria vontade da pessoa. As desigualdades sociais refletem o défice de realização de soberanos e servos, como seres dotados de inteligência para resolverem as suas contradições íntimas e para se consciencializarem das incoerências dos seus atos.
Entre a fatalidade identitária e a fatalidade da inconsciência pouco ou nada sobra. Talvez porque assim é menos doloroso o confronto com a realidade. E mais agradáveis as mentiras que são dadas a beber aos homens simples.

Luís Vendeirinho


  
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