Página  >  Opinião  >  A dimensão escondida da privatização e o trabalho académico em mudança

A dimensão escondida da privatização e o trabalho académico em mudança

O corte orçamental brutal em anos recentes intensificou o recurso das instituições a modalidades baratas de trabalho docente, com direitos e compromissos mínimos, ou mesmo escapando-lhes. Por outro lado, há mais de uma década que as carreiras estão congeladas e os quadros das instituições distorcidos e bloqueados.

Entre outras consequências, o défice de financiamento do Ensino Superior público em Portugal cria condições laborais que alteram a natureza, o conteúdo e o significado do trabalho académico. Importantes mudanças neste domínio aparecem associadas a um protagonismo crescente das instituições, também entendido como autonomia institucional, em paralelo com o incremento do poder dos gestores (órgãos, cargos, profissionais) face aos académicos.
Este crescente protagonismo institucional e o predomínio do poder dos gestores têm acompanhado, no nosso país, o encolhimento do investimento e do compromisso do Estado com o Ensino Superior público, alinhamento bem representado na figura de fundação pública de direito privado como a sua mais forte expressão.
O corte orçamental brutal em anos recentes intensificou o recurso das instituições a modalidades baratas de trabalho docente, com direitos e compromissos mínimos (como o trabalho a tempo parcial) ou mesmo escapando-lhes (p. ex., a mobilização informal de bolseiros de investigação ou de docentes a título gratuito).
De facto, o trabalho em regime de tempo parcial terá atingido, em 2014/15, cerca de um terço (33,3%) dos docentes do Ensino Superior público, tendo aumentado sempre desde 2007/08, enquanto no mesmo período diminuiu o número de docentes em regime de dedicação exclusiva e em tempo integral. Por outro lado, há mais de uma década que as carreiras estão congeladas e os quadros das instituições estão distorcidos e bloqueados com uma proporção que é cerca de metade da que a lei prescreve para as categorias de topo (professores catedráticos e professores associados) da carreira universitária, enquanto para o Ensino Politécnico a esmagadora maioria dos docentes se encontra nas categorias da base.

A pressão financeira foi, simultaneamente, um recurso para diminuir a responsabilidade do Estado e uma alavanca deliberadamente mobilizada para provocar alterações no Ensino Superior público.
Além das condições laborais, uma outra mudança foi por essa via promovida para os docentes, que se viram crescentemente compelidos a tornar-se ativos e permanentes ‘angariadores de fundos’ através do seu trabalho. Esta orientação vem assumindo múltiplas formas:
(i) uma preocupação muito viva com a atração de estudantes – conceção e divulgação de cursos mais longos ou mais curtos, incluídos ou não na carga letiva formal; pesquisa de destinatários e contratos e elaboração de propostas de formação;
(ii) a atenção ininterrupta às chamadas de concursos a financiamentos europeus;
(iii) as candidaturas consecutivas a financiamento de investigação;
(iv) a resposta a solicitações de apoio técnico-científico remunerado.
O “abismo” entre as expectativas e a experiência quotidiana do trabalho académico e “a narrativa de perda” não ocorrem somente porque rareia o tempo para ler, estudar e estar à altura das aspirações e exigências próprias e alheias nas atividades de ensino ou investigação. O “abismo” e a “narrativa de perda” estão no quotidiano do trabalho académico também porque nos “novos valores que passaram a guiar as instituições (...) a relevância económica sobrepõe-se, claramente, à relevância cognitiva, social e cultural do conhecimento”; no entanto, esta “não é uma imposição externa à universidade, que mecanicamente é seguida pelos que nela trabalham, mas resulta da adesão de uma parcela (cada vez mais considerável) de docentes”.
Entre outros desenvolvimentos, a Academia e o Ensino Superior público em Portugal vêm-se tornando locais de trabalho onde uma parte crescente daquilo que os docentes fazem quotidianamente responde ao esforço de ‘captar financiamento’ que possa ser institucionalmente considerado adequado e suficiente e não coloque em risco as diversas sobrevivências: individual, disciplinar, científica ou institucional. A diversificação das fontes de financiamento polariza-se, então, em boa medida, em mobilizar os recursos proporcionados por estudantes e professores: os estudantes pagam propinas; os docentes contribuem para financiar as instituições direcionando o seu trabalho para ‘angariar receitas’.

Fátima Antunes

Referências
Belmiro G. Cabrito, A mercadorização da educação e a intensificação do trabalho do professor do ensino superior, em Portugal.
Carolina C. Santos, Fátima Pereira & Amélia Lopes, Efeitos da intensificação do trabalho no ensino superior: da fragmentação à articulação entre
investigação, ensino, gestão académica e transferência de conhecimento
.
Christine Musselin, Redefinition of the relationships between academics and their university.
Deise Mancebo, João R. Silva Júnior & Daniel Schugurensky, A educação superior no Brasil diante da mundialização do capital.
Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência/Direção de Serviços de Estatísticas da Educação, Perfil do Docente 2014/2015.
Rui Santiago, Teresa Carvalho & Sónia Cardoso, Portuguese academics’ perceptions of higher education institutions’ governance and management: a generational perspective.
Stephen J. Ball & Deborah Youdell, Hidden Privatisation in Public Education.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo