A natureza, os propósitos e a (in)eficácia das práticas da ECG podem ser explicados pelos interesses de classe e pelas assunções elitistas fundadas no habitus dos decisores políticos que procuram impor visões específicas acerca de como as sociedades devem funcionar.
A missão da educação nunca esteve confinada às esferas política e económica. Além dos intentos dominantes da sua contribuição para o crescimento económico, a educação tem sido vista como uma espécie de panaceia para todos os tipos de males sociais, como a gravidez na adolescência, o consumo de drogas, etc. Também se espera que contribua para o desenvolvimento de sociedades (historicamente nacionais) e para a formação de cidadãos e de comunidades, funcionando como um repositório-chave e reflexo da consciência e da cultura nacionais, diferenciando um território ou região, ou mais especificamente um ‘destino comum’, de outros. Tendo este quadro como fundo, procurarei aqui problematizar as formas assumidas pelos sistemas educativos para responderem às expectativas ‘não-económicas’ a que estão atualmente sujeitos. Estas formas são muito visíveis nas tentativas de implementar a educação para a cidadania global (ECG) como um modo de contribuição ‘política’ da educação para a sociedade – que assume formas explícitas, mas de modo algum imparciais – e, mais genericamente, para o enquadramento da sociedade civil. Em particular, concentrar-me-ei nas distorções da ECG como resposta tanto às contribuições político-económicas da educação como à sociedade em geral, e sugiro que o seu fracasso abre novas áreas de preocupação e disputa, particularmente no que diz respeito a esta última. Sugiro que, tanto em termos de substância como de forma, o fracasso – ou melhor, a construção e aplicação inadequadas – da ECG gera e ocupa espaços para respostas geralmente populistas na área da sociedade civil. Essencialmente, e certamente em tempos neoliberais, a dominação do económico combina-se com uma política (a que dá forma) que efetivamente, mas ilegitimamente, atribui à ECG um papel de apoio à política económica, com consequências altamente significativas.
Imposição e codificação. O meu argumento em torno da ECG é que a natureza, os propósitos e a (in)eficácia das suas práticas – mas não o espaço político que ela preenche – podem ser explicados pelos interesses de classe, pelas assunções elitistas fundadas no habitus dos decisores políticos que procuram impor visões específicas (do neoliberalismo global) acerca de como as sociedades devem funcionar. Este processo é assumido e destina-se a apagar todos os vestígios das formas ‘pré-neoliberais’ das práticas e tradições nacionais e locais. A ECG pode ser vista como a imposição, consciente ou inconsciente, daquilo que corresponde à correção política seletiva por parte daqueles que a enquadram e procuram impor sobre os elementos reconhecidamente heterogéneos das populações. Especificamente, a ECG, longe de reconhecer e de se basear em assunções e pretensões (históricas) locais, codifica regras e estratégias que dão (mais do que o) igual reconhecimento dos direitos, entre outras coisas, a grupos minoritários, a milionários transnacionais, às regras da União Europeia que prevalecem sobre as do Reino Unido – a expensas destas últimas, dizendo-nos o que é "certo" fazer aqui. Isto, à medida que as economias políticas transnacionais procuram construir, com base na ECG, conjuntos de regras de conduta apropriada, através de um cosmopolitismo implícito que nega quaisquer reivindicações prioritárias aos nativos. Com efeito, usando os termos de Hirschman, a 'voz' dos 'nacionais' é negada/desautorizada, sendo apenas reconhecidas as formas e os propósitos da ECG. Ao mesmo tempo, as áreas em que eles poderiam expressar lealdade são erodidas e as suas oportunidades de saída inexistentes fora do âmbito de um tipo de política mais ou menos ‘insurrecional’. A ECG é algo que lhes é imposto e não para eles. É vista como uma deturpação/distorção/difamação do mundo (nacional) e da visão mundial que afirmam e sentem como sendo os seus.
Os papéis da educação. O que isto nos mostra é que os pobres – a classe trabalhadora nativa – se tornam estranhos, duplamente esquecidos pelo sistema educativo: genérica e diretamente, por um sistema manifestamente injusto e de classe, de acesso às oportunidades educacionais; mais indiretamente, pela depreciação e, muitas vezes, pelo menosprezo dos seus pontos de vista sobre o funcionamento da sociedade como um todo, e em particular do seu sistema educativo, como é evidenciado nas políticas da ECG. A profundidade e a natureza destas questões refletem-se nas palavras de Ralf Dahrendorf (1990) sobre a natureza da transformação pós-comunista que levaria “seis meses para a instituição da democracia parlamentar, seis anos para a economia de mercado e seis décadas para a sociedade civil”.
Roger Dale
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