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A meritocracia em educação e a pedagogia contra o outro

A meritocracia, enquanto governação das desigualdades sociais, terá já reformado a educação escolar, adotando o modelo da empresa e os seus modos racionais de gestão. A maior reforma, porém, será a da pedagogia.

1. Uma coisa é apreciar o mérito, embora seja difícil defini-lo e, mais raramente, de forma consensual e independente de cada contexto. Outra coisa, bem distinta, é defender o governo pelo mérito, ou seja, a meritocracia. Apesar da sua histórica conotação pejorativa, a meritocracia em educação é hoje abertamente elogiada e naturalizada, ignorando-se a sua emergência em contexto de sátira acidamente crítica.
O conceito deve-se ao sociólogo britânico Michael Dunlop Young (1915-2002) e foi particularmente influente nas políticas educativas britânicas após a publicação, em 1958, do seu livro intitulado «The rise of the meritocracy, 1870-2033: An esssay on education and equality». Para Michael Young, a sociedade moderna substituiu a “aristocracia de nascimento” por uma nova aristocracia: a “aristocracia do talento”. Esta seria, só pretensamente, mais igualitária, uma vez partindo da aparente justiça inerente à seguinte fórmula: mérito = inteligência + esforço.
Quanto à inteligência medida através de testes, é hoje mais fácil proceder à sua crítica, embora o imaginário social continue a conferir-lhe suficiente crédito. Porém, quanto ao esforço, especialmente a partir da Escola e de forma insular quanto à origem social dos alunos, tem sido objeto de um complexo processo de reificação que legitima, com renovado vigor, a meritocracia.

2. O elogio hiperbólico das novas elites, baseado no esforço individual, na ideologia do empreendedorismo, nos dons e nos talentos passíveis de mensuração através de testes estandardizados, representa as bases de legitimação de uma educação para a competitividade, de resto à escala internacional.
A competição e o apelo à emulação das “melhores práticas”, quase sempre de forma universal, descontextualizada e sem esclarecer segundo quem e que valores tais práticas são consideradas as melhores, transformou a educação escolar num poderoso aparelho burocrático, de tipo técnico-racional, num instrumento de promoção, avaliação e hierarquização de competências. Sobretudo de competências para competir num mercado mundializado, buscando a produção de qualificações funcionais ao novo capitalismo, à inovação e à empregabilidade. Passando a responsabilizar cada indivíduo pela capacidade de sobrevivência num ambiente hostil e altamente seletivo, no contexto de um darwinismo social onde só os mais aptos, os mais equipados, vencerão e, desse modo, legitimarão a sua superioridade sobre os restantes.
Uma nova oligarquia, talentosa, emergirá. Invocará a democraticidade do regime seletivo, a igualdade de oportunidades que a todos foi socialmente assegurada em termos de direitos sociais e de recursos oficialmente distribuídos ou disponíveis. Imputará o seu sucesso ao seu mérito, reconhecido por uma sociedade democrática que, finalmente, terá afastado as velhas elites e o seu tradicional desprezo pelas massas relutantes, por novas elites diligentes e empreendedoras, resultantes de sistemas de avaliação em larga escala, objetivamente objetivos.

3. Consolidado o regime avaliocrático e respetivo sistema quantofrénico, que tudo e todos submete a testes padronizados capazes de mensurar detalhadamente o mérito individual, com base na aplicação conjugada da inteligência e do esforço, em momento algum se admitirá que também o mérito assim medido se encontra socialmente distribuído de forma assimétrica no interior de uma dada população, reproduzindo de forma resiliente desigualdades sociais que só certos sociologismos da modernidade insistirão em evidenciar.
A meritocracia, enquanto governação das desigualdades sociais, terá já reformado a educação escolar adotando o modelo da empresa e os seus modos racionais de gestão. A maior reforma, porém, será a da pedagogia: transmissão do conhecimento exigido pela economia do conhecimento, treinamento de competências, assertividade individual, competição sistemática e de alto nível, orientação para a performance. Quem falhar poderá sempre submeter-se a novos testes. O lema – competir para progredir através de uma pedagogia contra o outro.

Licínio C. Lima


  
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