O ato da criação literária é um ato de descoberta, de aventura, de precisão, de invenção. O comprometimento do autor é um comprometimento de cidadania, uma intervenção política de subversão de dogmas. É um confronto com os preconceitos, um grito contra a resignação, uma leitura da realidade.
Não lembro quando, mas vi. Numa livraria, em cujas estantes repousava o génio de muitos autores universais, uma inteira parede tinha a foto de um reconhecido escritor português, legendada com dois ou três testemunhos assinados por outros autores: “O maior escritor contemporâneo”, dizia um deles. E as demais citações também punham o personagem no Olimpo das Letras. Ali, só pôde saber a falta de respeito. Não sei se tem um metro e setenta, ou mais, a crer no cartão de cidadão, ou se não fazia a dieta aconselhada pelo médico amigo. Também não me recordo quando, mas vi. Um título que merecera o mais avultado prémio atribuído no nosso país, ia só para dois anos, estava no logradouro da prateleira, lá atrás onde poucos clientes se atrevem, amarrotado e com um selo: “Em saldo.” O premiado, acerca de quem não mais se ouviu falar, não devia de ter gostado de ver. Hoje de manhã, hoje mesmo, agora estou certo, lá passei pelo cemitério de livros e chamou-me a atenção uma pilha, cada um embrulhado numa rede fina, cor-de-rosa, encimada por um laço, como aqueles das caixas de bombons ou dos sabonetes perfumados. Com as capas enrugadas com silicone já tinha visto, mas embrulhados com lacinhos cor-de-rosa foi a minha estreia. Também, naquela livraria, há muito tempo tropecei num metro-cúbico, sem exagerar, de um romance escrito por alguém que alugara o espaço. Talvez mais conforme as finanças do responsável do que com o mérito das palavras. É provável que para promoção do nome, jamais da obra. Acerca dos autores estrangeiros, e das suas traduções que crescem como cogumelos fora de época, é melhor nem perder muito tempo. Basta abrir uma página, ler um parágrafo e multiplicar as asneiras pelo volume do espécime. Não é preconceito, admitamos apenas que a questão não se coloca opondo autor e editor, mas antes refletindo sobre a relação entre obra e mercado. Se o mercado não é exigente, por que razão a obra haverá de ter qualidade linguística?
O ato da criação. Quando José Martí escreveu que todo o homem, para se realizar, deveria de ter um filho, plantar uma árvore e escrever um livro, referia-se à importância de cada cidadão, de uma forma ou de outra, deixar uma marca da sua pessoa no tempo da sua passagem. Não estava implícito que todos deveremos ser escritores, na aceção académica do termo e ante a abrangência do testemunho literário pelo qual o autor é responsável. O que acontece é haver pouco espaço para os escritores e exigências de comprometimento económico para que muitos livros sejam publicados. Aves de arribação, deixam páginas na berma da História, enquanto outros tantos, que professam a arte das Letras, pugnam e pagam com suor e lágrimas cada hora da criação. O que mais importa na refrega da cultura não é a democracia cultural, a face visível das obras inovadoras. A maior vitória é a realização das obras, porque o tempo é justo à luz da sua leitura e interpretação. O ato da criação literária é um ato de descoberta, de aventura, de precisão, de invenção. O comprometimento do autor é um comprometimento de cidadania, uma intervenção política de subversão de dogmas. É um confronto com os preconceitos, um grito contra a resignação, uma leitura da realidade. Em cada momento da escrita está presente, mais do que o tema, a arquitetura dos textos. É esta intimidade com a criatividade que denota o respeito pelos destinatários da mensagem, pelos leitores, em última análise. Por tudo isto, a obra nunca se deve considerar acabada, completa. Ela é o espelho da complexidade do mundo e da insatisfação do escritor que não encontra respostas para a compreensão do universo onde se move, para os motivos desse ente misterioso que se convencionou chamar de inspiração. O mais que possa exigir-se será a perfeição da gramática. A Literatura é prisioneira dos palcos onde se exibe, chama a si a defesa das suas causas, quebra o silêncio dos dias, faz luz onde reina a trivialidade das regras.
Luís Vendeirinho
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