“Touch of Evil tinha-se estreado em 1958, e não era tanto um regresso, mas uma reavaliação sardónica do cinema americano no final da década de 1950.” [David Thompson, in “ Como Ver Um Filme”]
Em Setembro, através do Cineclube do Porto, tive oportunidade de rever Touch of Evil e tive de escrever isto. Paixões... Orson Wells comeu a vida e o cinema a grandes bocados. Foi um gordo em espírito, mais tarde em cinema e finalmente no físico, devido ao seu requintado gosto gastronómico. Foi um sábio em inúmeros campos: homem da rádio, ilusionista excepcional, soberbo encenador, argumentista inigualável, brilhante criador televisivo e, last but not least, um dos maiores realizadores da história do cinema... Para sua sorte, e desgraça, a carreira de Wells foi marcada por ser o mais shakespeariano dos realizadores americanos, com um estilo europeu, e, sem que seja uma contradição, o realizador que mais amava Hollywood, embora também o que mais fracassos sofreu. Wells vagabundeava exilado na Europa, em meados dos anos 50, devido ao flop que tinha sido The Lady from Shangai, quando se abriu a hipótese de voltar a Hollywood para participar num thriller “muito mau em que aparecia como um detective corrupto”, segundo as suas palavras. O estúdio ofereceu o outro papel principal a Charlton Heston, que insistiu para que fosse Wells a dirigi-lo. O produtor Albert Zugsmith, após muitas hesitações, aceitou. Wells concordou, com a condição de reescrever o argumento, mas teve de o fazer em três semanas e meia. A Universal apenas lhe pagou o ordenado de intérprete. Wells respeitou a ideia original de um detective de profissionalismo inatacável, mas que falseia provas para encerrar os seus casos; o resto mudou tudo. Enquanto escrevia, começou a pensar no resto do elenco: Janet Leigh, Akim Tamiroff, Joseph Calleia e um jovem, Dennis Weaver, como recepcionista do hotel. Caso especial foi o de Marlene Dietrich – esteve um único dia na rodagem, como favor pessoal ao realizador, para as quatro sequências em que aparece.
Contrariedades e restauro. O filme foi rodado entre 18 de Fevereiro e 2 de Abril de 1957. Segundo Joseph Cotten, amigo de longa data de Wells e que faz um cameo, o estúdio tinha previsto uma rodagem de 38 dias e um orçamento de 829.000 dólares. No final foram necessários 39 dias e 900.000 dólares. Wells queria rodar em Tijuana, os produtores recusaram; filmou-se em Venice, nos arredores de Los Angeles, em cenários naturais. Wells tratou de todos os detalhes do filme, tendo inclusive pintado os quadros das raparigas e o letreiro Olvida usted algo? Wells confessa que a sua actuação – muito sóbria, ainda que cheio de maquilhagem e de enchumaços, para parecer mais gordo – “foi muito fácil, custaram-me muito mais os cinco dias em que trabalhei no Catch 22.” Apesar de Leigh ter partido o braço esquerdo e terem que escondê-lo da câmara durante mais de metade da rodagem e quase todas as cenas terem sido filmadas à noite, Wells acabou o filme nos 39 dias. “Fazer Touch of Evil foi uma satisfação inimaginável, um imenso prazer, com todos os participantes no topo do seu talento”, afirmou. A montagem de Virgil Vogel, debaixo da supervisão de Wells, arrancou no Verão. O realizador estava satisfeito, pois tinha conseguido um primeiro filme sem interferência dos executivos, até que... A Universal lhe arrebatou o filme, arranjou um novo montador, cortou 20 minutos e acrescentou dez fotogramas do rosto de Grandi a ser estrangulado... No princípio de Novembro, os executivos decidiram que havia que rodar mais um dia para filmar umas sequências para “aclarar o argumento”. Heston escreveu a Wells para explicar que estava obrigado legalmente por contrato a comparecer. Wells escreveu uma carta ao presidente da Universal com 58 pontos a mostrar como lhe tinham desvirtuado a obra. Ninguém lhe ligou e assim acabou o seu sonho de filmar dentro do sistema de Hollywood. A Universal Europa pediu autorização para o projectar na Exposição Universal de 1958, em Bruxelas, onde viria a ganhar o primeiro prémio. Do júri faziam parte Truffaut e Godard. Em Paris, esteve em cartaz um ano e meio. O memorando de 58 pontos acabou nas mãos de Heston e serviu de base à restauração do filme, em 1998. Foi esta que vi. A cópia em DVD é a mesma.
Paulo Teixeira de Sousa
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