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Meritocracia? Fui mediano, graças a Deus

A honra constrói-se na aprendizagem democrática, na solidariedade, nos princípios e valores humanistas que operam o crescimento interior, na cidadania, na cultura, no desporto, no respeito e na compreensão do saber estar com e não contra.

Quadros de honra. Felizmente, não me lembro de ter pertencido a esse grupo de eleitos; fui aluno mediano, graças a Deus. Algumas vezes abaixo da média. Participei, sim, em muitas outras situações informais e opcionais, as quais reconheço, hoje, a importância fulcral que tiveram na minha vida. Licenciei-me, fiz um mestrado, trabalhei em diversos âmbitos, abracei a escola pública e sempre fui feliz. Esse percurso deu-me consistência, responsabilidade e abertura ao Mundo. Conheço tantos assim. Isto a propósito do que venho a assistir, sobretudo nos últimos anos – a proliferação de prémios a crianças por mérito escolar, em alguns casos até pecuniários. Discordo. Que no final do Secundário, já numa condição de jovem-adulto, se distinga a capacidade técnica, científica, humana e cultural, aceito; nas primeiras fases, em função de programas curriculares, não, obrigado.
Não é de meritocracia que necessitamos. Nem entre crianças, nem entre escolas, com os famigerados rankings; tampouco entre professores, através de um indecoroso – porque burocrático, pressionante e gerador de conflito – sistema de avaliação de desempenho!
Considero inaceitável que tragam para dentro da Escola ou dela façam espelho das taras e doentias práticas empresariais. Esse mundo-cão da competição desenfreada deve ficar à porta, como exemplo negativo de uma sociedade desestruturada que corre e corre, não sabendo para onde. A Escola não deve assumir uma concepção mercadológica, uma valorização precoce e obsessiva, quando a perspectiva que a deve nortear é a da formação global, do gosto pelo conhecimento, da abertura ao pensamento universal e à descoberta.
Não se constrói o futuro com prémios, mas com humildade e com uma permanente pedagogia do saber, do rigor e da responsabilidade. Está em causa a diversidade da origem das crianças, as culturas que chegam à escola, as questões económicas, financeiras e sociais – tudo quanto se esconde a montante. Portanto, a questão central está em perceber como se pode falar de uma escola integradora quando se percorre o caminho contrário.

Estar ‘com’ e não contra. Ao mito do quadro de honra de uns opõe-se, parece-me óbvio, o ‘quadro da desonra’ dos demais. Depois queixam-se do bullying, entre múltiplas variáveis, porque uns são dotados e outros menos favorecidos. A honra constrói-se na aprendizagem democrática, na solidariedade, nos princípios e valores humanistas que operam o crescimento interior, na cidadania, na cultura, no desporto, no respeito e na compreensão do saber estar ‘com’ e não contra. Por aí se percorre o caminho da excelência.
Durante muitos anos, através da prática desportiva, cruzei-me com milhares de crianças e jovens. Nunca precisei de lhes facultar ‘incentivos’ quando, estando com os outros, dessem o melhor de si, respeitando-os. As internacionalizações e os Jogos Olímpicos foram atingidos com naturalidade e sem marginalizações. Esse foi o exemplo que incorporei e que transfiro para as etapas determinantes da motivação, o alicerce sobre o qual, paulatinamente, se edificam os pilares e as traves-mestras dos andares superiores do conhecimento, a prazo.
Lamentavelmente, até já destacam o mérito escolar de crianças e jovens institucionalizados. A correria pela pseudo-excelência anda desenfreada: são entidades bancárias interessadas, são governos, são autarquias, são instituições diversas e conselhos pedagógicos que se movimentam nesse sentido...
Assisto, na competição desportiva com crianças e jovens, à reprodução de quadros contrários à educação para os valores mais estruturantes. Para que servirá essa desnorteada correria? Para as crianças, nada; para o mediatismo dos adultos, certamente que sim. Vaidades que, em muitos casos, se pagam bem caro ao primeiro tropeção.
Quantos ditos ‘excelentes’ se tornam medianos profissionais, enquanto outros se afirmam pela diferença, pela criatividade e pela inovação?
A vida – dizem-me os anos que transporto – é muito mais do que currículos formatados, exaustivo cumprimento de programas, testes e prémios...

André Escórcio


  
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