Em que língua se diz, em que nação,/ Em que outra humanidade se aprendeu/ A palavra que ordene a confusão/ Que neste remoinho se teceu? José Saramago, Os Poemas Possíveis
“Só faltava mais esta... E logo eu, um francófono empedernido!”, queixa-se, para si, o Prof. S. ao saber de mais esta directiva, para o presente ano lectivo: a obrigatoriedade de os docentes alojarem no portal os programas das unidades curriculares... na versão inglesa. Já não bastava a A3ES [Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior], nos processos de avaliação e acreditação dos cursos, obrigar ao envio das fichas das unidades curriculares em versão bilingue (Português-Inglês), tal como acontece com as candidaturas a projectos de investigação financiados! A justificação para este procedimento assenta na necessidade de recurso à avaliação externa, mas as CAE/comissões de avaliação externa que por lá passaram e que incluíam ‘experts’ estrangeiros, o Prof. S. só as ouviu falar línguas latinas. Programas de todas as unidades curriculares de licenciaturas e mestrados em Inglês, porquê? Não é com certeza para os estudantes Erasmus (espanhóis, na sua maioria), pois as aulas são leccionadas em Português e é suposto eles aprenderem a língua do país de acolhimento. Não é, também, para os novos estudantes internacionais ‘captados’ noutras paragens (fruto do esforço de internacionalização em que, ultimamente, algumas escolas se envolveram, visando diversificar as fontes de financiamento); estes ‘clientes’ têm curso ad-hoc e os programas são elaborados exclusivamente em Inglês. Só que, até agora, os poucos ‘fregueses’ angariados pertencem à lusofonia. A sequência lógica será, a partir de agora, exigir-se nos concursos para professores de Ensino Superior que os candidatos demonstrem o domínio da língua de Shakespeare (sabemos que não se pode confiar no Google Tradutor), mas, sendo todos os concursos documentais (!), não será fácil satisfazer tal requisito.
O princípio... Esta onda arrasante de estrangeirismo linguístico começou quando o ministro Mariano Gago (do primeiro governo de José Sócrates) legislou sobre os “graus académicos e diplomas do ensino superior” (Decreto-Lei no 74/2006, de 24 de Março) – o artigo 51º incentivava os estabelecimentos à “utilização de línguas estrangeiras” em duas situações: a) “Na ministração do ensino em qualquer dos ciclos de estudos”; b) “Na escrita das dissertações de mestrado e das teses de doutoramento, e nos respectivos actos públicos de defesa”. O legislador (politicamente correcto) não especificou nenhuma língua em particular, mas todos tinham em mente o Inglês. Tanto era assim que o seu ensino (e não o de qualquer outra língua) seria introduzido, por esse XVII Governo Constitucional, no currículo do 1º Ciclo do Ensino Básico. Esse decreto-lei escancarou a porta ao Inglês no meio académico nacional, subestimando-se a língua de Camões-Pessoa-Saramago, que, com os tratos de polé entretanto infligidos pelo AO90 [Acordo Ortográfico de 1990], corre sério risco de extinção. A pujante e imparável língua inglesa assumiu-se como língua franca e planetária conseguindo um estatuto nunca alcançado pelo Latim. Ela tem esbatido barreiras, permitido o diálogo pan-nacional, facilitado os negócios globais, mas, em contrapartida, tem delapidado, inexoravelmente, o património linguístico regional e nacional. Concomitantemente, a língua portuguesa (tal como a generalidade das suas ‘congéneres’ europeias) definha, perde qualidade e degrada-se a olhos vistos. Vamos incorporando, a uma ritmo cada vez mais veloz, o vocabulário inglês que já não se restringe aos termos técnicos e às áreas da informática e do marketing.
... e o fim. Hoje a minha filha vai ao shopping center comprar umas calças push up e uma embalagem de body lotion e ver os novos tablets na phone house; depois de um snack rápido, reserva os bilhetes numa low cost e ainda vai a tempo de beneficiar do desconto no pack de depilação. Amanhã faz jogging no Paredão ou opta pelo step no ginásio – há falta de um personal trainer que a ajude no bodybulding) e, após o coffee break com as amigas, aplica-se numa curta sessão de dance fitness. Antes de levar os miúdos a comer um happy meal (para ela, será um vegan wrap) ao drive in de Birre, na sua station wagon (ouvindo música cool nos seus headphones topo de gama), ainda passa numa PC clinic para instalar o drive do computador. Durante a semana, vai intercalar o trabalho de preparação do workshop da sua startup com o lazer de uns movies no Lisbon & Estoril Film Festival. Não faltará muito, pensa o Prof. S., para que os colegas do Departamento de Línguas apresentem aos futuros professores do 1º Ciclo, nas aulas de didáctica da leitura, um alfabeto sintonizado com a onda linguística mainstream (A/apple, B/bluetooth, C/chat, D/download, E/e-mail (...) S/skype, T/ twitter, U/usb, W/wi-fi, Y/youtube), substituindo o velho A/águia, E/égua, I/igreja, O/ovo, U/uva.
Luís Souta
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