Na Escola parece possível mudar quase tudo, desde que não esbarre com o currículo. Pensar um currículo mais flexível, mais adequado ao mundo e aos alunos e mais inclusivo, no sentido de não deixar ninguém para trás, é um dos pontos centrais da Educação de hoje.
1. O currículo – conjunto de conteúdos, objetivos e metas que todos os alunos devem atingir – vive numa aura de beatitude e de evidência que o torna blindado a quaisquer assaltos reformistas sobretudo se vierem ‘de baixo’, isto é, das escolas. Todas as componentes do sistema educativo se desenvolveram de forma interdependente. Os grupos disciplinares, a avaliação, a organização da escola, a forma como se desenvolve o trabalho pedagógico, as expectativas de todos os atores foram-se entrosando de tal forma que, à semelhança de um castelo de cartas, não é possível alterar uma componente mantendo as restantes inalteradas. Ora esta interdependência dificulta muito qualquer processo de inovação curricular. Um exemplo dos muitos possíveis: há muito que se fala que o 2º Ciclo do Ensino Básico deveria ser (re)conceptualizado. Ninguém acredita que a melhor fórmula é que as crianças de 10 anos, depois de estarem num sistema de monodocência, passem abruptamente para um sistema estanque de disciplinas. Este solavanco no percurso escolar é sobejamente conhecido e existem trabalhos, mesmo ao nível do Conselho Nacional de Educação, que recomendam que esta passagem deve ser feita de forma mais gradual, tendo os alunos um currículo organizado em áreas disciplinares que seriam lecionadas por um professor. A questão que se coloca a seguir é: quais as alterações que esta mudança no modelo curricular implicaria nos quadros de professores? Mudanças talvez tão complexas que, apesar de se saber que se está a fazer algo de menos correto, não se consegue corrigir um erro que não é senão uma cicatriz da forma como construímos o Ensino Básico. O currículo, que nunca deixou de estar no âmago da discussão, tem estado mais visível ultimamente, por três motivos: porque o Governo fala que é preciso enxugá-lo, porque se fala que tem de ser repensado em função da sua utilidade e abrangência e porque se agiganta o problema de saber o que se faz aos alunos que não atingem o ponto sideral do sucesso naquele tempo.
2. Antes de mais, fala-se de enxugar o currículo. Mas ele está encharcado? Está. Está obeso de conteúdos, de objetivos, de metas, de avaliações. Todas elas parecem inquestionáveis e inultrapassáveis – como aquele obeso que dizia ‘o que me faz engordar é o nevoeiro’... Os exemplos deste facto são muitos, mas há tempos vi que um aluno de 11 anos, que está no 7º ano, tem duas páginas para estudar as ideias de um senhor que fala das placas tectónicas. Após as duas páginas, descobre-se que, afinal, as opiniões do senhor estavam desatualizadas e vem, então, a explicação atual. As perguntas do teste de aferição eram sobre se os alunos conheciam as ideias do senhor, que afinal eram erradas. O aluno perguntou: ‘mas se isto está desatualizado porque é que temos de estudar?’. Exemplo entre milhares de como o currículo está repleto de conteúdos que talvez só uma análise biográfica aos autores dos programas pudesse justificar porque é que estão lá. Como diz Carlos Alberto Torres, “por trás de cada teoria está uma biografia”. Um segundo aspeto é que o currículo precisa de ser pensado “de cima para baixo”, isto é, do que se pretende para o que se aprende. Na ilustração vemos dois funis: podemos imaginar que, espreitando pela parte mais estreita, um aluno olha para o mundo, um mundo cheio de informação, de conhecimento, de relações. Esta seria a forma mais habitual de olhar a Escola – alargamento do horizonte visível do ponto de vista do aluno. Mas o que se passa está mais relacionado com o segundo funil: a Escola recebe alunos portadores de cultura, de conhecimento e de saberes e afunila-os em conteúdos, metas e objetivos. E aqui nos fica outro ponto importante de reflexão: a Escola não pode ser uma redução da complexidade; pode e deve ser uma reflexão, uma organização, uma complementação da complexidade, mas nunca deve ter a função de inverter o funil para os alunos ficarem a ver menos do que viam antes. Temos aqui a grande responsabilidade de não diminuir na Escola a visão mais larga e complexa do mundo que os alunos têm na vida real. Por fim, precisamos de um currículo que possa servir a todos os alunos. Isto só é possível se, juntamente com a mudança do trabalho pedagógico (metodologias de projeto, maior implicação de grupos de alunos na aprendizagem, etc.), existir forma de reconhecer o máximo que os alunos aprenderam, mesmo que eles tenham aprendido menos do que os normativos estariam à espera naquele tempo. Temos aqui a grande responsabilidade de apoiar o melhor que soubermos a aprendizagem e a educação de todos os alunos num compromisso partilhado de chegar o mais longe possível.
3. Aqui chegados, levanta-se a questão: o que se faz a quem não chegou onde tínhamos previsto no tempo que tínhamos previsto? Reconheço a ousadia dos pontos que levanto acima. Mas quando os qualifico de ‘ousados’ não posso deixar de me lembrar que todo o edifício está concebido para ser autolegitimado e auto-justificado. Quem o questionar – como tantas vezes, e melhor do que eu, tantas pessoas fizeram no passado – carrega o anátema de provocar e de sabotar um sistema que as pessoas mais conservadoras consideram que estaria perfeito se tivesse só mais um pouquinho de disciplina. O currículo está, hoje como sempre, no ‘olho do furacão’, no cerne dos valores, objetivos e práticas da escola. Pensar hoje um currículo mais flexível, mais adequado ao mundo e aos alunos, mais inclusivo, no sentido de não deixar ninguém para trás, é, talvez, um dos pontos centrais da Educação da contemporaneidade.
David Rodrigues
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