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Sobre a doutrina do mal menor

Importa compreender que ao impedir as mudanças, a doutrina do mal menor contribui para agravar os problemas. A eleição de Donald Trump está aí para o provar, tal como o Brexit e o crescimento assustador dos movimentos de extrema-direita na cena política europeia.

No debate subsequente à vitória de Trump, Francisco Louçã falava, na Antena 1, do grito de revolta dos deserdados da globalização. Na sua perspetiva, foram os desempregados dos outrora grandes centros industriais dos Estados Unidos da América (agora deslocalizados), os proprietários rurais endividados ou os jovens sem futuro que deram, também, um contributo decisivo para a derrota de Hillary Clinton, vista como a candidata do establishment político, financeiro e mediático. A desilusão desta gente com um homem que é multimilionário porque tem beneficiado desse mesmo establishment, que agora diz combater, é outra história.
Não será a primeira vez que isto acontece. Nas Filipinas, e para falar de um exemplo recente, Rodrigo Duterte mostra-nos o risco e o horror da fórmula que alimenta todos os populismos. Começa-se por prometer meter o Rossio na Betesga, anunciando-se a possibilidade de se encontrar a quadratura do círculo. Assim, exploram-se os medos e dá-se vazão às raivas para, em seguida, se sustentar as esperanças através da oferta de um conjunto de respostas fáceis que ou se esboroam rapidamente, no primeiro confronto com a realidade, ou não passam de armadilhas que só se descobre que o são quando os demagogos tomam o poder.
Em Portugal, na Educação, tivemos também o nosso Trump, ainda que mais educado e refinado, o ex-ministro Nuno Crato, que, como comentador, analista e autor de livros, conduziu uma cruzada contra o que designava por pedagogia romântica, bastante apreciada pelo público em geral e por muitos professores em particular, defendendo a necessidade de repor a autoridade perdida dos docentes, restaurar a exigência e o rigor nas salas de aula de onde foram banidos e fazer implodir o Ministério da Educação.

Litígios constantes. Além de não ter concretizado nenhum desses objetivos, acabou por criar problemas atrás de problemas. São célebres os erros na colocação dos professores e a sua correção teimosamente tardia que estiveram na origem de perturbações escusadas na abertura de alguns anos letivos no tempo em que foi ministro.
Os litígios constantes nos tribunais, devido aos reiterados atropelos à legislação em vigor, ou a classificação dos centros de investigação, por parte da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, marcada pela arbitrariedade ou a ausência de critérios credíveis, são outras manifestações da incompetência prepotente através da qual Crato governou o sistema educativo. O aumento do número de alunos por turma, a reestruturação apressada e contranatura de programas implementados três anos antes, sem que tenha realizado uma avaliação cuidada e sem ter em conta os resultados positivos em provas internacionais, constituem mais alguns exemplos de um legado catastrófico.
Entretanto, se a autoridade dos professores estava perdida, perdida continuou. O Ministério da Educação – o tal que deveria ser implodido – continuou a existir como estrutura centralizada e autocrática, enquanto a exigência e o rigor se encontram bem presentes no au-mento dos números do abandono e do insucesso escolares, estando ainda por fazer um estudo esclarecido sobre os exames nacionais e o modo como foram sendo politicamente geridos.
Enfim, se o modo populista é uma modalidade de gestão política do poder que se tem vindo a afirmar, importa compreender que também há outras modalidades bem mais subtis de o fazer. A doutrina do mal menor é uma dessas modalidades, que, como o Henrique Borges nos dizia há dias, serve, sobretudo, para domesticar os sonhos e inibir a possibilidade de se concretizarem as mudanças. O voto de muitos norte-americanos em Hillary Clinton, de forma a poder travar a vitória de Trump, é uma manifestação de tal doutrina, que poderá adquirir a sua expressão mais cínica quando nos depararmos com muito boa gente a defender o voto em François Fillon, o candidato mais próximo das propostas de Marine Le Pen, para evitar que a presidência francesa caia nas mãos da candidata da extrema-direita.

Que consequências? Na Educação, e sendo Crato um acontecimento do passado, é a doutrina do mal menor que continua a vigorar, sobretudo, nas escolas e nas decisões que aí se vão assumindo. O problema é que a doutrina do mal menor, legitimada pela necessidade de se construírem consensos que conduzam a mudanças graduais, tem vindo a mostrar-se não como solução, mas como problema. Em vez da mudança pretendida, acaba por se impedir a mudança, no momento em que o desejável se subordina ao possível, em nome do estabelecimento de um tipo de consensos que, na prática, conduz a um processo que visa evitar a mudança e ocultar esse processo através da adoção de novas soluções, periféricas ao problema que seria necessário enfrentar: a falta de sentido e de significado cultural e formativo do trabalho que se realiza nas salas de aula.
Não será por acaso que nas escolas se têm vindo a aperfeiçoar as estratégias de natureza supletiva e compensatória que, quantas vezes, servem apenas para tentar resolver problemas de aprendizagem criados pelas e nas escolas. A gestão burocratizada dos curricula, por via da subordinação estrita às propostas e aos recursos que os manuais disponibilizam, é um desses problemas.
As atividades de aprendizagem que se reduzem à realização de exercícios sem qualquer valor formativo, na medida em que apenas visam suscitar o treino de competências, as quais, acredita-se, um dia mais tarde terão a sua utilidade prática, enquadram-se também nesse tipo de problemas, assim como a ausência de uma reflexão de natureza epistemológica sobre os conceitos estruturantes subjacentes às ideias ou aos procedimentos que sustentam as propostas de trabalho.
Além destes problemas, importa chamar a atenção para práticas pedagógicas que inibem e desvalorizam a reflexão dos alunos, porque se considera que, em geral, eles são incapazes de se envolver em reflexões consequentes. Por outro lado, identificam-se problemas que têm a ver com o modo como se avalia, já que o avaliar continua a subordinar-se ao classificar e o classificar tem estado na origem de procedimentos avaliativos que, mais do que incentivar as aprendizagens, visam, acima de tudo, detetar e penalizar os erros, bem como aqueles que os cometem.
Finalmente, olhe-se para a indisciplina como um fenómeno que não poderá ser circunscrito, apenas, à alegada má educação dos alunos; olhe-se também para o mal-estar dos professores e para a imensa Babel em que se tornou o debate sobre o ensino e pergunte-se quais serão as consequências desta situação, quer do ponto de vista da vida dos alunos e dos docentes, quer do ponto de vista da sobrevivência e reconfiguração do sistema público de educação e da natureza e qualidade da nossa vida coletiva.

Ariana Cosme e Rui Trindade


  
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