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Sociedades migratórias e pedagogia migratória

O movimento migratório não é somente um processo de transposição de fronteiras físicas, mas um fenómeno que questiona as fronteiras simbólicas entre ‘nós’ e os ‘outros’. Trata-se de uma temática clássica na análise dos processos de inter-relacionamento pessoal. O outro é visto como ameaçador da ordem e, por isso, é estigmatizado.

Num tempo em que a discussão, premente e necessária, sobre o acolhimento dos refugiados que chegam às fronteiras da Europa, nos diferentes espaços nacionais que a constituem, domina o discurso em torno dos movimentos migratórios, importa não invisibilizar os fluxos migratórios que não assumem o caráter forçado e trágico associado aos movimentos de refugiados.
É o conjunto e a multiplicidade destes fluxos que justifica a denominação das sociedades atuais como sociedades migratórias, em que se testemunham, com diferentes graus de intensidade, fluxos emigratórios e fluxos imigratórios de duração e caraterísticas variadas. Sociedades que, em maior grau que no passado, são marcadas por movimentos multidimensionais que ligam de forma intensa espaços de origem e espaços de destino, formando uma intensa rede de relacionamentos que formam espaços sociais transnacionais que se desenvolvem para além dos limites dos vários espaços nacionais (Thomas Faist, The Volume and Dynamics of International Migration and Transnational Social Spaces, 2000).
Na constituição e sustentação destes espaços sociais transnacionais, as fronteiras assumem um lugar central, quer da distinção que os Estados-Nação estabelecem entre os que se encontram no seu interior e os que a ele pretendem aceder, quer da forma como os Estados procuram lidar com a diferença e heterogeneidade no interior das suas fronteiras. As fronteiras, como nos recorda Georg Simmel, “não são um facto espacial com consequências sociológicas, mas um facto sociológico espacialmente formado” (Soziologie. Untersuchungen über die Formen der Vergesellschaftung, 1908). A fronteira é, nesta conceção, não apenas uma linha que separa os territórios, mas é, também, produtora de processos de diferenciação entre os indivíduos e os seus espaços sociais.
As migrações contribuem para intensificar e, simultaneamente, problematizar as fronteiras territoriais – por serem “pontos de fricção” no movimento migratório (Tim Cresswell, Towards a Politics of Mobility, 2010) – e, sobretudo, as fronteiras simbólicas da pertença, questionando uma das diferenciações centrais das sociedades: entre o ‘interno’ e o ‘externo’; ou, segundo a perspetiva sistémica, entre o sistema e o seu ambiente.

Pedagogia migratória. O movimento migratório não é, por isso, somente um processo de transposição de fronteiras físicas, mas um fenómeno que questiona as fronteiras simbólicas entre ‘nós’ e ‘os outros’. Trata-se de uma temática clássica na análise dos processos de inter-relacionamento pessoal. O outro é visto pelos ‘estabelecidos’ (Norbert Elias e John L. Scotson) como ameaçador da ordem e, por isso, de forma negativa, ou seja, é estigmatizado (The Established and the Outsiders, 1965).
Nega-se, assim, que o normal (o estabelecido) e o estigmatizado resultam das próprias situações de interação. Isto é, não resultam explicitamente da existência de pessoas com características diferentes e com diversos períodos de presença num território, mas do facto destas pessoas desenvolverem diferentes formas de interação num espaço particular (ou seja, do facto da sua proximidade tornar mais recorrente o processo de definição das fronteiras no interior de uma sociedade).
O olhar informado sobre estas interações deve permitir a identificação de situações de conflitualidade crescente e o desenvolvimento de estratégias que, sem anular as diferenças (que são normais nas atuais sociedades funcionalmente diferenciadas), contribuam para a (con)vivência entre os múltiplos outros que existem em qualquer sociedade.
O reconhecimento das diferenças e do potencial trazido pela experiência migratória constitui um campo central de uma ‘pedagogia migratória’. Uma pedagogia que complementa a necessária atenção aos aspetos interculturais próprios das sociedades plurais contemporâneas, com a análise do processo migratório e da representação dos imigrantes no espaço público e nas instituições e das suas oportunidades de participação nas sociedades (de acolhimento e de origem); o estudo das questões associadas ao racismo e à luta contra a discriminação assente, entre outros, na nacionalidade e no grupo étnico de pertença; a interrogação dos processos de pluralização, de diferenciação e de segregação social; etc.

Abordagem transnacional. Este campo de intervenção da pedagogia beneficia da adoção de uma abordagem transnacional, em que a atenção dedicada aos contextos de receção é completada com informações provindas do contexto de origem e do processo migratório que liga estes dois espaços sociais.
Se é verdade que a pedagogia intercultural se realiza, sobretudo, na atenção dispensada ao acolhimento das diferenças culturais nos designados países de receção, a pedagogia migratória deverá, além destes contextos, integrar na sua ação o trabalho a desenvolver com os emigrantes residentes noutros países e contribuir para o seu acolhimento nesses países. Alarga-se, deste modo, o campo de ação de vários grupos profissionais, reconhecendo-se que a intervenção e ação socioeducativa com os cidadãos nacionais residentes no exterior não constitui, necessária e exclusivamente, uma prerrogativa dos ‘trabalhadores do social’ desses países.
Como mostra a realidade de grupos particulares de emigrantes portugueses (idosos, prisioneiros, toxicodependentes, etc.) em diferentes países, a intervenção orientada para a ajuda e para a ressocialização destes grupos pode ser positivamente enquadrada na ação de profissionais que partilhem os mesmos quadros de referência daqueles que se encontram em risco, ou necessitados de ajuda – por exemplo, o trabalho exercido por educadores sociais e outros trabalhadores sociais portugueses (ou que dominem a cultura comunicativa portuguesa) junto de emigrantes idosos institucionalizados em países cujas línguas nunca aprenderam verdadeiramente, afigura-se central para a integração dessas pessoas nas instituições.
O reconhecimento dos diferentes campos de ação da intervenção socioeducativa dirigida aos migrantes, informada com o conhecimento das especificidades dos diferentes processos migratórios, permite, ainda que de forma limitada, alargar o âmbito, frequentemente localizado, da ação dos educadores sociais e, assim, contribuir para a expansão das fronteiras (territoriais e simbólicas) da sua ação.

José Carlos Marques


  
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