A coincidência de o apelido do anterior primeiro-ministro acomodar conexões com a denominação de um espaço do Parlamento e com o título do livro é isco insinuante q.b. para atrair curiosos, mas os amantes de boa literatura coloquial ficarão certamente agradados com o bónus que lhes é reservado nos diálogos do último terço do livro.
Muita da ficção de Ernesto Rodrigues (ER) mais próxima de nós ressente a infatigável predisposição do autor, também ensaísta, professor universitário, poeta e crítico literário, para vasculhar na História o pão e o chão de que necessitam as suas narrativas de modo a integrarem, com toda a justiça, a categoria de romance histórico. Assim foi com O Romance do Gramático, assim aconteceu com A Casa de Bragança, que precedeu o livro de que agora me ocupo, Passos Perdidos, e que têm no já longínquo A Torre de Dona Chama a sua referência primordial, digamos, a sua matriz, à qual ER jurou lealdade, tendo até hoje cumprido. Todavia, em plena trajetória, um romance intruso obriga o autor a fazer agulha para diferente destino e o problema dos refugiados modernos que ele veicula altera de alguma maneira uma linha de orientação, já escrutinada, inerente à investigação contida em páginas e páginas sobre o nosso passado comum. Deixarei este surpreendente momento de viragem para outra ocasião, concentrando-me em Passos Perdidos (Âncora, 2014), quer por razões de espaço, quer porque ainda não li Uma Bondade Perfeita (Gradiva), acabado de chegar aos escaparates (março). Importa acentuar que a tendência de ER, ao insistir em achar conteúdo romanesco (ou de não ficção) no filão da História de Portugal, se reporta às épocas mais renhidamente polémicas em termos parlamentares e jornalísticos, de que dão impecável testemunho trabalhos como Crónica Jornalística do século XIX, Mágico Folhetim, Cultura literária oitocentista e uma infinidade de visitas ao inesgotável ‘armazém’ camiliano, de onde brota o ‘ar do tempo’, constitui um excelente vício cuja cura não está, por enquanto, à vista. Mas não se pense que só os ‘oitocentos’ fascinam ER. A herança de Fernão de Oliveira, autor da primeira gramática portuguesa, perseguido pela Inquisição (1532), ‘rendeu-lhe’ O Romance do Gramático, e em A Casa de Bragança surpreende Pedro e Inês no auge da sua ligação amorosa em confidencial teste à hospitalidade bragançana ao que parece ter os contornos de uma real escapadela. Coisas factuais, ocultas por razões de Estado ou outras igualmente caprichosas, mas de imperativa circunstância, são hoje um manancial de se lhe tirar o chapéu, sobretudo quando o escrúpulo da análise moderna põe à mostra os alçapões da versão oficial da memória coletiva. Como o logra ER. E o centenário da República também lhe deu pretexto para assinalar a efeméride com um precioso livro de recolha de depoimentos dos contemporâneos dos acontecimentos. A História foi, por conseguinte, a fonte de que manou a energia que percorre o grosso desta literatura, às vezes difícil de penetrar, mas tão desafiadora na demonstração das suas capacidades de utilização da língua que nela o leitor mais obstinado na identificação dos nexos narrativos sempre encontra pretextos para não dar por perdidos os passos gastos nessa tarefa de paciência.
TRIBUTO A CAMILO. Este romance de ER, tal como os demais, impõe que o mesmo seja fruído enquanto encontro de linguagens cujo potencial irónico, aqui posto à prova no tratamento de uma questão de grande acuidade, que recai no cotejo do parlamentarismo português dos nossos dias com o parlamentarismo de há 150 anos, na tão certeira ilustração que dela faz Camilo Castelo Branco, em A Queda de um Anjo. O tributo que o romance camiliano recolhe em Passos Perdidos é-lhe prestado por um capítulo assim intitulado mais um discurso parlamentar (Um Discurso e Pêras), decalcado da chamada de atenção dirigida ao plenário pelo morgado Calisto de Barbuda. A par e passo vai ER desvendando com acerto e saboroso cinismo, de riso mal camuflado, semelhanças entre comportamentos tão acintosamente ‘eternas’ que a estória, à medida que adensa discussão nas justas das bancadas partidárias, vai também ganhando a significação literária e política que o leitor informado não pode deixar de interpretar como uma bem humorada, mas corrosiva crítica à coligação que cumpriu e até ultrapassou as ‘recomendações’ do Fundo Monetário Internacional (FMI) para reduzir a dívida soberana através do ataque à poupança e ao direito ao trabalho dos portugueses. A coincidência do apelido do então primeiro-ministro acomodar conexões com a denominação de um espaço do edifício do Parlamento e com o título do livro é já isco insinuante q.b. para atrair curiosos ao ‘recado’ inscrito nestas páginas, mas os amantes de boa literatura coloquial ficarão certamente agradados com o bónus que lhes é reservado nos diálogos de qualidade com que o autor sonoriza o último terço de Passos Perdidos. Como nessa escrita derradeira é desvendada uma vibrante história de amor (olá, intertextualidade!), nada melhor do que a linguagem do desejo para remunerar quem chegou ao fim da operosa experiência de leitura que o livro exige, agasalhando sem esforço esse esforço num fino e cúmplice sorriso.
Júlio Conrado
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