Ninguém tenta substituir a leitura de Truffaut, mas o filme de Jones é pelo menos tão importante na compreensão, na finalidade e no impacto do livro, tal como este foi na nossa compreensão dos filmes.
Para o Orlando, parceiro de muitas aventuras no cinema
Com este título, que o Adriano adorou, escrevi na PÁGINA no 83, de Setembro de 1999, um artigo sobre o livro. Desta vez escrevo sobre o filme. Este documentário, Hitchcock/Truffaut, como o livro – um “humilde livro” – conseguiu mudar o cinema para sempre. Em 1962, o então quase estreante jovem realizador francês François Truffaut, brilhando de confiança depois de ter realizado Les 400 Coups e Tirez Sur le Pianiste, escreveu a Hitchcock – ele num pico da sua carreira após Psycho – perguntando se o “Mestre” não se importava de se “submeter a uma série de entrevistas sobre a sua carreira”. As intenções de Truffaut eram claras: desenhar a experiência de indústria, juntando a prática de um crítico e realizador neófito à de um realizador experimentado, para provar a sua, e dos jovens turcos dos Cahiers du Cinéma, teoria da “politique des auteurs”. Nós, hoje, temos o privilégio de viver numa época em que a Internet está inundada de cineastas que se debruçam sobre as sequências principais.
CHOQUE CULTURAL. O documentário de Kent Jones, co-escrito com o crítico e ex-director dos Cahiers, Serge Toubiana, sugere exactamente aquilo que a revelação do livro terá sido para sucessivas gerações de cinéfilos e candidatos a realizadores. Vários exemplos aparecem, desde Martin Scorcese a Kyoshi Kurosawa, Olivier Assayas, Richard Linklater... O seu testemunho sugere que nos encontramos perante um choque cultural – é o momento em que os filmes ditos comerciais estão a ser levados pela primeira vez a sério. As entrevistas de Truffaut aventuram-se para além do técnico-biográfico. Uma espécie de encontro com o pai idolatrado, que disseca a sua própria obra e ao mesmo tempo expõe os seus pecadilhos. Dois homens de tendências diferentes – o humanista francês e o showman sem vergonha – que se encontram algures no meio, definindo assim a agenda para os moviebrats americanos posteriores, assim como o programa de estudos de cinema para o século XXI. Este filme poderia ter ficado a um nível estritamente académico, convidando apenas realizadores para falar de um realizador que fala com um grande realizador. No entanto, Jones reconhece que este projecto nunca teria ido tão longe sem a presença de Helen Scott, a intérprete, que fez a ponte entre as duas personagens, que sem ela não teriam a mínima hipótese de comunicar.
O MELHOR DE DOIS MUNDOS. Onde Truffaut nos fez “ver” cenas cuidadosamente seleccionadas, Kent Jones pode mostrar-nos a cena do milheiral, de North by Northwest, para ilustrar os comentários feitos por Hitchcock, e o ataque da lareira de The Birds para mostrar o preenchimento do espaço do écrã, sublinhando o design de precisão de cada movimento da câmera. As gravações audio originais são uma autêntica benção: há algo extraordinário ao ouvir a lascívia na voz de Hitchcock quando descreve o que Kim Novak estava a fazer no quarto de banho em Vertigo, revelando mais sobre a personalidade dele do que qualquer número de palavras impressas. O resultado é o melhor de dois mundos, uma ‘adaptação’ do tipo que nos leva de volta ao livro e aos filmes analisados. E se Vertigo e Psycho dominam a discussão, Jones e Toubiana garantem alguns filmes de segunda linha, por exemplo I Confess e The Wrong Man, que também recebem a sua análise. Ninguém tenta substituir a leitura de Truffaut, que perdura na crítica de cinema rigorosa, mas o filme de Jones é pelo menos tão importante na compreensão, na finalidade e no impacto do livro, tal como este foi na nossa compreensão dos filmes.
Paulo Teixeira de Sousa
|