A emergência decide habitualmente com base nos recursos sobrantes e nos serviços possíveis, e menos nos adequados. Nesta condição, é sempre possível baixar mais os níveis de apoio, vigorando a lógica do “quem dá o que tem...” No caso, ‘quem’ reporta-se ao Estado e ‘tem’ é o que se elegeu distribuir, no (des)concerto das prioridades.
Os designados tempos de austeridade, que mais precisamente são tempos de políticas (escolhas) de austeridade, têm-se oferecido a ponderações várias sobre as suas consequências em muitos campos societais. É de estranhar (ou não será?) que nestas análises se tenha tornado mais visível as (não) performances económicas e financeiras. Estamos preenchid@s de mensurações e apreciações que depressivamente nos vão avisando de que estamos no bom caminho, apesar de tal não se ter traduzido ainda (advérbio esperançosamente repetido) nas condições de vida perdidas ou não alcançadas por milhões de portugueses e portuguesas. Este tem sido também um tempo de prova para muit@s profissionais e, de entre estes, para quem se inscreve nas designadas profissões sociais. Conheço melhor o campo profissional d@s assistentes sociais, onde são notórios os efeitos das políticas de austeridade. A precarização das condições de trabalho trivializou-se e alguns dos argumentos para vínculos laborais incertos (chamam-lhes flexíveis) é de que mais vale assim do que o desemprego. Sim, porque por mais inusitado que pareça, o agravamento da pobreza e exclusão social tem-se desenvolvido a par do acréscimo de desemprego entre esses profissionais. Além disso, argumenta-se que, tratando-se de profissionais que trabalham junto d@s que vivem em situação de maior carência, se espera a sua boa vontade e que apliquem o critério benemérito de ajuda ao próximo. Assim se confundem as exigências de profissionalismo com os pilares da ação voluntária, historicamente relevante e cuja ação não deixou de ter campo e razões de existência.
A LÓGICA DA EMERGÊNCIA. Uma outra marca da austeridade por relação às profissões tem sido a imposição (diplomaticamente aludida no Memorando de Entendimento) da desregulação profissional como vantajosa e amiga das “novas” condições de ajustamento estrutural. Trata-se, a meu ver, de uma outra forma de erosão profissional, que desvanece as razões e na sua ausência deixa lugar para condições laborais casuísticas sempre em busca da melhor combinação entre trabalho qualificado e remunerações low cost (aproveitando o défice da procura perdida). Mais especificamente no campo do Serviço Social, uma marca trazida pela austeridade prende-se com a imposição de serviços emergenciais e de agravada seletividade. Que contornos são os destas orientações? A emergência decide habitualmente com base nos recursos sobrantes e nos serviços possíveis e menos nos adequados. Nesta condição, é sempre possível baixar mais os níveis de apoio, vigorando a lógica clássica suportada pelo ditado português “quem dá o que tem...” Só que no caso, o ‘quem’ reporta-se ao Estado e o que se ‘tem’, foi o que se elegeu distribuir no (des)concerto das prioridades. Este exercício tem permitido enaltecer como tem sido possível para alguns que vivam com tão pouco (viver, neste caso, quer dizer sobrevivência low cost). A lógica da emergência tem tido, ao longo das políticas de austeridade, um efeito de contágio por relação ao conjunto dos benefícios de proteção, não só pelo abaixamento e inadequada restrição a que força os cidadãos, mas também porque se apresenta como uma ‘lição’ sempre invocada de outras formas de resposta às necessidades (nem que sejam permanentes e não esporádicas). Este efeito de contágio mais ou menos prolongado permite falar, hoje, de um viés de emergencialização na proteção social, mais visivelmente invadindo o historicamente sacrificado campo da Assistência Social.
DIREITOS LOW COST? A emergencialização tem no seu bojo a ideia de que se pode adiar a proteção adequada. E mais, que não há necessidade de clareza quanto aos critérios de transparência – mas precisam dela, as necessidades estão à vista e a insuficiência de recursos também. E assim se penalizam sobretudo os cidadãos, os abrangidos e os que se autocontêm para não recorrer aos apoios – é sempre possível encontrar quem esteja mais no fim da linha, ou mesmo fora dela – e deixá-los para os que mais precisam. E neste contexto todos saem pobremente assistidos e sub-protegidos. Mas saem também penalizados os profissionais (designadamente os da linha da frente) que se tornam mal-amados por todos (cidadãos e dirigentes), no contexto de uma lógica que acrescenta o número dos mal servidos pelo (ainda designado) bem-estar. É assim que, em contexto de uma austeridade de alto teor de discricionariedade, se ofende também a profissionalidade, que passa a ser tanto mais adequada quanto mais low cost se revela (em termos das condições de exercício e dos padrões de resposta aos cidadãos). E não fica por aqui o padrão low cost, pois o ambiente democrático é também atingido por grandes níveis de ameaça e desconfiança. E se guardássemos os padrões low cost para outros campos da vida que não fizessem perigar a existência digna e com direitos? Quase me esquecia desta palavra...
Fernanda Rodrigues
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