A alteração da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei no 142/2015, de 8 de setembro) introduz significativas alterações no sistema de acolhimento de crianças e jovens em perigo, esperadas e desejadas, com especial relevância para o acolhimento familiar. Entre as circunstâncias sociais e históricas que rodearam a revogação parcial da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo podem referir-se, nomeadamente: - o elevado número de crianças e jovens a viver em instituições, e o escasso número a viver em famílias de acolhimento – menos de 5% do total, o que afasta Portugal dos países de modelo industrial ou pós-industrial, com os quais partilha maiores afinidades culturais e sociais; - as recomendações feitas pelo Committee on the Rights of the Child (2014) sobre o terceiro e quarto relatórios periódicos apresentados por Portugal, advertindo para a necessidade de fortalecer a prestação de cuidados de base familiar e de se desenvolver uma estratégia de desinstitucionalização dos serviços de acolhimento; - a recomendação no 112/2013, da Comissão da União Europeia, que declara como objetivo evitar confiar crianças a instituições e fazer o reexame regular dos casos de institucionalização; - o consenso generalizado na comunidade científica acerca da necessidade de assegurar às crianças que são retiradas das suas famílias a possibilidade de viverem em ambientes familiares, capazes de satisfazer as suas necessidades de desenvolvimento. A tendência comum nos países de modelo semelhante ao nosso, nas últimas décadas, tem sido a redução do recurso ao acolhimento residencial em prol da utilização do acolhimento familiar. A intervenção protetora obedece agora, com a nova redação do artigo 4o, a um conjunto de princípios, entre os quais se destacam: - a continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto; - a prevalência das medidas que integrem a criança ou jovem em família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adoção ou outra forma de integração familiar estável; - a preservação das relações afetivas estruturantes, de grande significado para a criança e jovem, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante.
FAMILIAR VS RESIDENCIAL. A Lei de Proteção faz prevalecer, deste modo, as relações afetivas que a criança mantém relativamente aos laços familiares, que se caraterizam pela ausência das condições necessárias para o seu desenvolvimento. O essencial é garantir a possibilidade de viver num contexto familiar seguro, individualizado, com estabilidade e afeto. No acolhimento residencial, esse relacionamento é impraticável, uma vez que os profissionais têm de encontrar e manter a necessária distância relativamente às crianças, o que dificulta ou inviabiliza essa relação de proximidade, de dedicação incondicional e afeto. A criança relaciona-se com rostos diferentes, com distintas regras e rotinas e tendo consciência de que as pessoas que trabalham na instituição têm uma família, a sua família, para a qual regressam ao fim do dia e com a qual passam os fins de semana, as datas festivas e as férias. A Educação fica muitas vezes comprometida, tal como a aprendizagem dos afetos e a possibilidade de ter uma vida social normal, como ter uma rede de amigos, poder ir às compras, ao parque ou ao cinema. Por fim, o artigo 46o estabelece que a aplicação da medida de acolhimento familiar prevalece sobre a de acolhimento residencial, em especial relativamente a crianças até aos seis anos de idade, salvo em circunstâncias excecionais e específicas, que têm de ser fundamentadas, ou quando se constate impossibilidade de facto. Esta será, provavelmente, a mudança mais significativa operada pela revogação parcial da Lei de Proteção, pois reconhece o acolhimento familiar como um contexto mais adequado para o bem-estar da criança nesta faixa etária. E impõe, simultaneamente, que se invista decisivamente em campanhas para selecionar e formar um número de famílias de acolhimento que possam oferecer a resposta desejada, de modo a garantir os cuidados adequados às necessidades das crianças e dos jovens e a educação necessária ao seu desenvolvimento integral.
Paulo Delgado
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