A cidadania não pode ser mais uma prerrogativa política que se confere ao conjunto de seres humanos de um Estado, mas antes uma prerrogativa humana que, para ser consequente, deve adquirir uma dimensão política universal concreta.
Os direitos humanos, hoje, deverão considerar necessariamente a herança que a história nos transmitiu e aquelas que são as novas condicionantes e potencialidades do mundo contemporâneo, as quais, no seu conjunto, impõem não só a adequada perceção dos referenciais da vida de cada um e de cada sociedade por si e em conjunto, como também a própria conceção de cidadania enquanto expressão e fundamento dos direitos humanos. Destacamos, a este propósito, as seguintes constatações: - a geografia do mundo contemporâneo não se confina mais a uma visão estaticamente territorialista e política, impondo-se antes a valorização de uma geografia social de movimento de populações que, transgredindo as antigas fronteiras, veem frequentemente outras a serem erguidas; - a mundialização trouxe, entre outras valências, a proximidade do que era longínquo, suscitando tanto encontros inéditos como novos alheamentos e confrontos marcados pelos conflitos entre a presença do outro e as representações cimentadas por preconceitos; - com a receção de contingentes significativos de migrantes, designadamente de refugiados, emergem renovadas perplexidades e tangências entre as ideias e vivências de identidade cultural, interculturalidade e trans-culturalidade, suscitando nomeadamente a irrupção de identidades híbridas, complexas, multidimensionais e instáveis.
ALGUNS DADOS QUANTITATIVOS. O número especial da revista Histoire, de dezembro de 2015, dedicado à problemática das migrações, ajuda-nos a compreender a importância e a dimensão dramática que este fenómeno assume nos nossos dias. Assim: - desde logo, é fundamental tomar-se consciência de que o 24º “país” do mundo em população é o do exílio, com 60 milhões de pessoas exiladas em 2014 por causa da violência e, muito concretamente, por causa dos atentados aos direitos humanos; - em 2014, 660.000 pessoas pediram asilo na Europa – entre junho e agosto de 2015, foram 367.929; ainda em 2014, 283.532 tentaram passar a fronteira externa da União Europeia de modo ilegal; paralelamente, registaram-se 400.000 ordens de expulsão, das quais apenas 40% se efetivaram; entretanto, 441.780 estrangeiros habitavam na União Europeia (UE) de forma irregular; - Mas não há somente refugiados de guerra: assistimos igualmente à progressão dos refugiados das alterações climáticas, frequentemente não reconhecidos enquanto tais (a própria Convenção de Genève, único texto legal internacional de referência para os refugiados, não os contempla); todavia, em 2013, 22 milhões de pessoas abandonaram as suas terras devido a catástrofes naturais, calculando-se que, em 2050, serão 200 milhões; - os Estados acabam por delegar na Organização da Nações Unidas e em organizações não governamentais (ONG) um significativo espaço de soberania constituído pelos campos de refugiados e de deslocados (no mundo, cerca de 2.500), criando uma situação complicada aos seus ocupantes, em termos de cida- dania – colocados nas margens dos Estados, qual o seu estatuto?; - uma das principais consequências do encerramento radical das fronteiras tem sido a diminuição do número de regressos, mesmo que as condições nos países de origem o permitam, a par do aumento exponencial do número de clandestinos e das vítimas que tentam romper as barreiras criadas – acontece na fronteira dos Estados Unidos com o México e repete-se nas fronteiras externas da UE, onde nos últimos 25 anos morreram mais de 40.000 pessoas que tentavam entrar; - é falso que, por exemplo, com a crise da Síria, a maioria dos refugiados, em termos relativos, procure a Europa, onde não representarão mais de 2% da sua população – na realidade, só o pequeno Líbano acolheu 1,7 milhões de refugiados; entretanto, na República Democrática do Congo, vivem cerca de três milhões de deslocados por força de outras calamidades e violências.
NOVA CIDADANIA. A cidadania não pode ser mais uma prerrogativa política que se confere ao conjunto de seres humanos de um Estado, mas antes uma prerrogativa humana que, para ser consequente, deve adquirir uma dimensão política universal concreta. A Escola, desde logo, mas igualmente todas as organizações comunitárias da sociedade civil têm de ser impregnadas da consciência cívica que os dados aqui descritos e as reflexões que lhes são inerentes impõem. Em prol de uma nova cidadania...
Adalberto Dias de Carvalho
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