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Os espelhos de Alice

A intolerância e a xenofobia proliferam quando os senhores da guerra soltam os seus peões para matar e minar os elos de cultura. Mas então brota a escola cosmopolita, onde as histórias da história são escritas. A escola da comunicação surge sempre, porque há sempre quem a faça surgir.

A PRAIA. Foi a primeira vez que ele viu a praia. Não tinha sido um passeio. Quando a coluna de soldados entrou na escola normal e na casa do diretor de serviços, seu pai, ele disse-lhe para pegar umas poucas coisas para partir. Levou um livro e um ursinho. Foram de comboio. Pouco tempo. As linhas tinham sido bombardeadas. Conseguiram uma boleia, em direção à costa. Objetivo: chegar ao Reino Unido. Entre Lille e Dunquerque, ficaram retidos numa estância balnear. Não havia barcos para civis, não se avançava. Havia confrontos entre soldados, mais atrás. Não se recuava. Restava-lhe ler histórias do livro para o irmão mais novo, que tinha dois anos, e para o ursinho do irmão; e fazia com que na escolinha improvisada passassem a ser três.

O CAMPO. Ela saiu com a mãe e com as irmãs, numa coluna de refugiados. O pai ficou, incumbido de chefiar o pelotão que seguraria a costa. Cada dia, em cada vila onde chegava, a coluna registava-se nas autoridades: “somos refugiados, seguimos amanhã.” Repetiram esta rotina até não conseguirem continuar viagem. Quarenta pessoas ficaram alojadas numa quinta, perto da fronteira espanhola. Durante o dia havia algum trabalho no campo, no qual podiam ajudar. À noite, conversava-se. Entre crianças e adolescentes, hóspedes e refugiados, improvisaram uma “escola”.

O BECO. Vivia num beco, numa casa minúscula, por baixo do cheiro da fábrica de peles onde o pai trabalhava. Quando a fábrica de peles fechou, deixou de ver o pai. Alguns anos depois, mudou de país, de beco e de casa. Passou a frequentar a escola do bairro onde se falava uma língua incompreensível. No recreio, sim, tinha com quem falar.

A CIDADE DE LONA. Chegou à noite, depois de uma travessia num insuflável. Foi uma viagem que lhe ficou gravada, para sempre, na memória. Teve um medo que não consegue exprimir com palavras, quando uma onda envolveu o pequeno barco e todas as pessoas começaram a gritar. Rapidamente se organizaram e começaram a tirar a água de dentro do barco com chapéus e sacos. Alguns homens, entre eles o pai dela, penduraram-se borda fora e mantiveram o barco a flutuar. Uma embarcação militar encontrou o insuflável ao cair da noite. A pé, por terra, seguiram até à cidade de lona, onde as mães e alguns voluntários improvisaram uma pequena escola, para falar, desenhar e escrever o vivido, enquanto esperavam o que mais lhes iria acontecer.

A praia... Ele tinha dez anos. Voltou para a escola normal, parcialmente ocupada pela tropa alemã. A escola manteve-se aberta durante cinco anos, fintando os invasores. Ouvi a história muitas vezes, sempre que o meu pai falava da sua infância.
O campo... Ela tinha nove anos. Voltou para a costa belga. A escola continuou, até ser bombardeada novamente, tal como a casa dela, cinco anos mais tarde, na altura da libertação. A minha mãe contou-mo tantas vezes.
O beco... Ela tinha nove anos. Chegou à casa de bairro acompanhada pelo irmão. Em pequenos grupos, contando histórias e a sua história, aprendiam a língua flamenga com voluntários do bairro e do antigo beco operário. Contava a sua ainda curta infância, a minha vizinha da Turquia.
A cidade de lona... As autoridades deixaram em pé a escola improvisada, uma das duas construções de madeira, quando se destruiu a cidade de lona onde a vizinha síria da minha irmã esteve alguns meses. Tem 13 anos. Traduz para esta nova língua estranha o que os pais dela não percebem do que lhes é dito no curso obrigatório de integração.

O ESPELHO. A intolerância e a xenofobia proliferam quando os senhores da guerra soltam os seus peões para matar e minar os elos de cultura. Mas então brota a escola cosmopolita, onde as histórias da história são escritas. A escola da comunicação surge sempre, porque há sempre quem a faça surgir. Entre os peões, há quem observe do outro lado do espelho, cultivando a ilusão de que não é usado. Como Alice, há quem atravessa o espelho. Partilha histórias com outros e ganha consciência, aspira a não mais ser usado. Como em toda a história da humanidade, em todo lado, também na Europa, entre 1939 e 2016.

Pascal Paulus


  
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