Admito pagar impostos para suportar um sistema de ensino gratuito porque acredito que é uma forma de minorar a discricionariedade no acesso ao sistema de ensino; já não me agrada a ideia de pagar impostos para sustentar empresas com interesses comerciais.
A gratuitidade dos livros de estudo no 1o ano do 1º Ciclo, medida implementada recentemente pelo governo em exercício, parece à primeira vista uma medida de inegável justiça social – ou traduz, pelo menos, aquilo que parece ser um regresso a uma responsabilidade efetiva do Estado pela Educação pública. Comece-se por aqui para mais tarde alargar a outros anos do sistema de ensino. Até aqui subscrevo por baixo: admito pagar impostos para suportar um sistema de ensino gratuito porque acredito que isso é uma forma de minorar a discricionariedade entre as crianças (e suas famílias) no acesso ao sistema de ensino. Simplesmente, penso que a questão está fortemente deslocada do eixo estruturante que a deveria suportar. A medida é tomada num contexto no qual se admite a inevitabilidade dos manuais escolares, assumindo claramente a dependência que o sistema de ensino tem, para funcionar, de um conjunto de entidades privadas que os elaboram. Ora, não sendo função do Estado elaborar os ditos manuais, mas sim as linhas diretrizes e programáticas daquilo que se deve ensinar nas nossas escolas, parece obnubilar-se de seguida o investimento que esse mesmo Estado faz na formação dos professores que atuam no seu sistema de ensino. O que é suposto, parece-me, é que o nível de formação destes profissionais permita equacionar, perante ‘pautas’ programáticas emanadas do Ministério da Educação, a capacidade destes para assegurar a construção de materiais para o ensino inscrito e pressuposto nessas mesmas pautas programáticas. Além de o Estado negar a sua própria competência na formação dos professores (ou das instâncias que a asseguram), obrigando-os a um exame de acesso à carreira, de seguida obriga-os não a comprometerem-se com o ensino de determinados saberes, mas a subordinarem-se a manuais interpretativos das ditas pautas programáticas, elaboradas por instituições que, independentemente da competência com que o fazem, subordinam a sua ação a uma racionalidade comercial. O direito do professor (da escola, do agrupamento) a escolher determinado manual, em detrimento de outros, evidencia uma hipotética concorrência livre e saudável, mas não deixa de mascarar um princípio, insistentemente abraçado pelo Ministério da Educação, de profundo descrédito pelas competências dos professores que o próprio Estado forma. Pareceria interessante, pelo menos, ter a ousadia não de eliminar o trabalho das editoras, mas de alimentar políticas conducentes a um trabalho de produção de materiais pedagógicos e didáticos por parte dos próprios professores, na convicção profunda de que os mesmos têm saberes e competências bastantes para o fazer.
TROCA DE PRIORIDADES. A sensação de ‘desperdício’ de saberes detidos por profissionais altamente qualificados, mas igualmente de desrespeito pelas suas qualificações e pelas pessoas concretas que as detêm – ao subordiná-los, não estritamente a um ‘programa’, mas igualmente aos modos de o ensinar –, não augura nenhum salto qualitativo relevante à medida agora tomada; fica tudo na mesma, o ónus apenas deixa de ser suportado pelas famílias para passar a ser suportado pelo Estado. Reafirmo: não questiono pagar impostos para suportar a gratuidade do sistema de ensino; já não me agrada tanto a ideia de pagar impostos para sustentar empresas com interesses comerciais. O investimento feito pelo Estado nestes recursos poderia, certamente, de modo muito mais eficaz, ser aplicado nas escolas para apoiar recursos que sustentassem a elaboração de materiais pedagógicos e didáticos por parte dos professores, afinal os verdadeiros profissionais da Educação. Recentemente, a equipa ministerial lançou o desafio para os professores se pronunciarem sobre as orientações curriculares, medida que me deixa um laivo de esperança, mas igualmente de estupefação: independentemente da capacidade dos professores para se pronunciarem sobre o que Chevaillard designa por transposição didática (o que é que do saber sábio se deve converter em saber a ensinar?), é mesmo a eles que compete este exercício? Até subscrevo, mas depois subordinam-se aos manuais elaborados pelas editoras? Pede-se aos professores aquilo que eles não têm forçosamente que dar – pronunciar-se sobre as metas e programas curriculares cujos contornos devem ser politicamente determinados – para depois lhes impor manuais de trabalho, justamente no campo das suas competências e onde elas deveriam ser maximizadas? A questão não é esta, insisto. Parece-me haver troca de prioridades, mas também de compreensão do alcance das medidas que o Ministério da Educação vem propondo.
Henrique Vaz
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