Alguns até já sabiam ler um pouco; outros reconheciam palavras, ou liam outdoors na rua. Mas o que eles queriam mesmo, era saber ler, como qualquer adulto. – Professora, vais ensinar-nos a ler de verdade, como os crescidos? – perguntavam, de olhos expectantes, no primeiro dia de aulas do 1º Ciclo. No fim do ano, já sabiam “ler de verdade”, já podiam aceder sozinhos a pequenas histórias, decifrar aventuras, reconhecer frases e letras de canções. Mas nos anos seguintes queriam mais, queriam embrenhar-se na leitura de pequenos livros, ir embalados na descrição de mundos desconhecidos, mas reconhecíveis. Acediam a um universo que até ali lhes parecia reservado aos adultos. Alguns, porque se tratava de um contexto rural, muitas vezes pobre na oferta de oportunidades e situações de leitura, até se enchiam de importância a ajudar adultos a descodificar alguma informação escrita. Decidi avançar um pouco mais – até porque era um grupo coeso e solidário, com dificuldades, mas em que ninguém ficava para trás – e falei-lhes de outro tipo de histórias. Falei-lhes dos diários, e de como também eles podiam ter o seu diário. Já tínhamos um Diário de Turma, mas um diário individual era diferente. Li-lhes um pouco do “Diário” de Sebastião da Gama e gostaram. Falei-lhes também do “Diário” de Anne Frank. Aí ficaram em suspense, queriam saber mais coisas. Contei-lhes sobre o que se passava na Alemanha naquele período, fizeram perguntas, muitas perguntas. Incrédulos, estarrecidos, queriam saber mais pormenores daquela menina, o que lhe teria acontecido, como se entretinha enquanto estava escondida, se tinha amigos, como brincava... Li-lhes alguns pequenos excertos. Depois, apesar de algumas solicitações para que lesse mais, avançámos para outras tarefas. Alguns dias depois, estava eu a trabalhar na biblioteca da escola, vi o Bruno, franzino, de olhos curiosos, um dos meus alunos mais intervenientes, na fila para requisitar livros. A seguir ouvi-o argumentar com a minha colega, responsável pela biblioteca: – Posso requisitar este livro? – e mostrava um papel onde estava escrito, por ele, “diário de Anne Frank”. A minha colega disse-lhe que não era boa ideia, porque era um livro muito grande. – Mas eu não me importo que seja grande, eu gostava mesmo era de ler esse... – Mas é um livro difícil para um menino que só anda na terceira classe. Acho que não vais gostar, vais cansar-te a meio. Podias levar outro. – Mas eu queria era o diário de Anne Frank, porque queria saber mais coisas sobre ela... – Não, não podes levar esse. Só os meninos mais crescidos. Mas tenho aqui outro, que é mesmo para a tua idade, que é a história de um gato da Anne Frank. Leva-o, que eu acho que vais gostar. Vi o Bruno encolher os ombros, contrafeito, e aceitar, resignado, o livro que lhe apresentavam. Não disse nada, mas três dias depois, no fim da aula, entregou-me o livro do gato Mouschi: – Pega, professora, já li. Mas o que eu queria mesmo era ler o diário de Anne Frank. Tu disseste que tinhas um. Não mo podes emprestar? E foi assim que, no dia seguinte, eu levei o livro e o emprestei ao Bruno. Alguns dias depois, a Fátima, perguntava-me com ar tímido: – Eu também posso levar este livro? – e depois foi a Marília, o António, o Eduardo, a Carla, a Joana e todos os outros. Nunca percebi se todos tinham lido o livro todo, nem lhes perguntei. Por vezes, alguns faziam alusões a um acontecimento da história, um episódio que os tinha tocado, mas não sei exatamente se o tinham lido ou ouvido comentar a algum dos colegas. O que sei, de facto, é que a curiosidade pelo livro, o interesse por um acontecimento, a partilha de uma mesma história, uma eventual entreajuda, podem ter dominado as dificuldades de leitura de alguns. Mas a magia da leitura aconteceu, cresceu e galgou as barreiras do que está estipulado, ou previsto, nas classificações etárias ou num qualquer plano nacional de leitura.
Angelina Carvalho
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