O interceltismo musical nunca foi objeto de reflexões e de análises despidas de conclusões apriorísticas, prestando-se a equívocos e a ambiguidades normalmente orientadas por tomadas de posição não devidamente fundamentadas. Amado ou odiado, o interceltismo musical já foi considerado uma moda (passageira, como todas as modas) ou algo de retrógrado e sem sentido no tempo presente, por um lado, mas também foi incensado e apontado como exemplo de preservação e divulgação de expressões musicais particulares (música celta). ?Consideramos que o fenómeno musical do interceltismo não pode ser adequadamente analisado e compreendido sem uma abordagem aos antecedentes mais remotos da Renascença Céltica ou Celtismo, por um lado, e à mais recente criação do chamado Arco do Atlântico. ?Mas importa ter bem presente que, quando falamos de interceltismo musical, de modo algum excluímos outras expressões artísticas (tais como artesanato, artes pictóricas e artes visuais, entre outras) que normalmente incorporam o quadro das chamadas atividades paralelas. Trata-se, portanto, de uma designação abrangente, tanto mais que, não raro, a componente musical é apenas mais um pretexto para as celebrações intercélticas em sentido amplo.
Celtismo. Remontam a meados do século XVII as primeiras obras associadas a um movimento literário dito de Renascença Céltica, historicamente determinado pela derrota dos Jacobitas, maioritariamente provenientes das Terras Altas da Escócia, na Batalha de Culloden (1746), que acabaria por ter expressão numa obra traduzida do gaélico, de James MacPherson (Retalhos de Poesia Antiga Recolhida nas Terras Altas da Escócia, 1762), logo seguida de outras obras referenciais deste movimento literário que, nas primeiras décadas do século XIX, se converteria num movimento de inegáveis contornos políticos, sociais e culturais. ?Determinados pelo emergente movimento romântico europeu, surge a Celtic Society of Edinburgh (1820) e realiza-se, em Abergavenny, o que ficou designado como tendo sido o I Congresso Céltico (1838). Mais ou menos nesta altura, começam a surgir as primeiras obras integrantes de uma literatura celta, sobretudo publicadas na Escócia, Irlanda e Bretanha francesa (Mabinogion, de Charlotte Guest; Barzaz Breiz, Hersart de la Villemarqué), mas seria a partir da segunda metade do século XIX que o movimento do celtismo se iria afirmar como movimento cultural, com uma dinâmica que muito contribuiu para a sua definitiva consolidação no decurso do século XX. ?Com efeito, será no decurso do século XX que o celtismo se irá consolidar como movimento cultural, político e social (recebendo a designação genérica de pan-celtismo), estendendo-se pela Europa e, do outro lado do Atlântico, pelo Canadá e Estados Unidos da América – em Portugal, é publicada a revista Céltica, sob a direção de Oliveira Gomes (1960-1961).
Arco Atlântico. Os antecedentes da ideia de uma federação atlântica podem situar-se nos inícios do século XX, segundo Alain Guillerm, “com o aparecimento da “corsedd” (assembleia) dos bardos criada em 1901 na Bretanha, imitando a que tinha sido fundada no século XVIII no País de Gales, uma organização muito séria, estruturada e popular”. ?No entanto, o impulso decisivo seria propiciado pela criação da Liga Céltica, incluindo a Escócia, a Irlanda, o País de Gales, a Ilha de Man, a Cornualha, a Bretanha e, mais recentemente, a Galiza. Embora maioritariamente escrito em inglês, o Celtic League Journal – jornal por ela editado – inclui sempre textos escritos nas línguas das regiões abrangidas. ?Guillerm remete para um ‘pano de fundo’ de grande efervescência cultural que, no final dos anos ‘80 e início de ‘90 do século XX, conduziu ao aparecimento do chamado Arco Atlântico, agrupando vinte e sete regiões e países europeus com costas atlânticas. ?A Comissão do Arco Atlântico foi criada em 1989, em Faro, tendo elaborado um vasto e ambicioso programa de ação nas áreas económica, social e cultural, que, ao longo dos anos foi procurando concretizar, de algum modo lutando para ultrapassar as políticas de diferenciação negativa dos poderes centrais relativamente às periferias atlânticas.
Interceltismo musical. Em todo o processo, foi dada particular importância à necessidade de divulgação dos princípios orientadores da Comissão. Fundado em 1971, na Bretanha, o Festival Interceltique de Lorient correspondia a um evento-tipo capaz de contribuir para a necessária visibilidade pública, pelo que o seu modelo seria amplamente replicado em toda a Europa (mais de 50 eventos desta natureza), desde logo na Península Ibérica: Festival Folclórico Internacional do Mundo Celta de Ortigueira, na Galiza (1978); Festival Intercéltico do Morrazo, também na Galiza (1985); Festival Intercéltico do Porto (1986). ?Os pressupostos fundamentais do interceltismo musical assentam em duas premissas referenciais de programação: - as músicas tradicionais de países ou regiões com passado celta comum são consideradas músicas vivas, constituindo os padrões de influência e de enraizamento das expressões folk; - a programação não assenta apenas na permanência do passado, privilegiando novas abordagens e propostas de interculturalidade e de interação com outros géneros musicais. Trata-se, portanto, de integrar na programação músicas tradicionais e/ou folk de países ou regiões com um passado celta comum, recusando liminarmente a etiqueta de ‘música celta’ ou ‘céltica’. Festivais como os do Porto ou de Sendim nunca usaram essas expressões, por não serem rigorosas e carecerem de fundamentação científica. ?Em boa verdade, a ‘música celta’ porventura nunca terá existido; quando muito, terão existido músicas celtas – tantas quantos os povos tidos como tal, na sua mais do que provável diversidade e multiplicidade. Daí que preferimos falar de ‘celebrações intercélticas’, entendendo o interceltismo musical como resultante de uma celtitude abrangente, não excludente, nem fundamentalista de coisa nenhuma.
Mário Correia
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