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Atena, deusa da educação

Os séculos passam, mas o imperativo divino existe. Quem não estuda para saber, encomenda-se à Virgem de Fátima, que passou a ser a Atena dos nossos dias. É o que Nuno Crato não sabe.

Em novembro de 1990, no meu livro «A construção social do insucesso escolar» (editado pela antiga Escher, hoje Fim de Século), escrevia sobre esta ideia: pega no livro e estuda. Era o que os pais analfabetos da aldeia costumavam dizer às crianças que frequentavam a escola, para se formarem e saberem mais do que eles em letras – reportava a minha análise aos anos oitenta do século passado, e as crianças eram mandadas para o quarto, para lerem os livros determinados pelos professores primários da escola de Vila Ruiva, no concelho de Nelas.
Não havia sagacidade, não havia orientação por parte dos pais, avós, tios, ou outros adultos da casa, para as ajudar. As crianças, fechadas nos seus quartos, distraíam-se com revistas de histórias, desenhos animados ou com a televisão. Tudo faziam para se distrair, por essa falta de orientação para as atrevidas matemáticas, biologias, geografias ou outras ciências em que mais tarde seriam examinadas. Faltava uma divindade para as ajudar – era o que Atena fazia na época clássica da Grécia.
Atena, também conhecida como Palas Atena é, na mitologia grega, a deusa da guerra, da civilização, da sabedoria, da estratégia, das artes, da justiça e da habilidade. Uma das principais divindades do panteão grego e um dos doze deuses olímpicos, recebeu culto em toda a Grécia Antiga e em toda a sua área de influência, desde as colónias na Ásia Menor até às da Península Ibérica e do norte da África; a sua presença é atestada até nas proximidades da Índia.
Por isso, o seu culto assumiu muitas formas, além de a sua figura ter sido sincretizada com várias outras divindades das regiões em torno do Mediterrâneo, ampliando a variedade das formas de culto. Foi uma das deusas mais representadas na arte grega e a sua simbologia exerceu profunda influência sobre o pensamento grego, em especial nos conceitos relativos à justiça, à sabedoria e à função civilizadora da cultura e das artes, cujos reflexos são percetíveis até nos dias de hoje em todo o Ocidente.
A sua imagem sofreu várias transformações ao longo dos séculos, incorporando novos atributos, interagindo com novos contextos e influenciando outras figuras simbólicas. Foi usada por vários regimes políticos para legitimação dos seus princípios e penetrou, inclusive, na cultura popular. A sua intrigante identidade de género tem sido de especial apelo para os escritores ligados ao feminismo e à psicologia e, por fim, algumas correntes religiosas contemporâneas voltaram a prestar-lhe verdadeiro culto.
Não havia Atena na cultura lusa, que acreditava nos costumes cristãos. O saber das crianças era propiciado pelo Espírito Santo, uma parte da trilogia da divindade que se adora em Portugal: Pai, Filho e Espírito Santo. Na minha análise das crianças de Vila Ruiva, observei que a Trindade desempenhava o papel de Atena.
Os séculos passam, mas o imperativo divino existe. Acredita-se e, em Portugal, quem não estuda para saber, encomenda-se à Virgem de Fátima, que passou a ser a Atena dos nossos dias – quer para as crianças, quer para os pais, que oram para pedir sabedoria para os filhos e, convictos de serem ouvidos na sua fé, não se interessam por mais.
É o que Nuno Crato não sabe. Limita-se a fechar escolas e a juntar turmas e não procura tutorias para as crianças receberem explicações e entenderem mais – como os pais, que deviam ser os primeiros a ser educados outra vez, para lhes explicarem os livros por que os filhos estudam. Livros emprestados ou herdados de irmãos ou parentes mais velhos, porque quem nos governa tem causado o pânico com os cortes orçamentais. E o ministro da Educação não se queixa nem refila perante o seu superior.
A catequese, desconhecida para este ministro, faz parte do saber mais. É teoria cristã o que aí aprendem aos domingos, mas substitui-se à ciência escolar. Nos tempos de Atena, toda a Grécia era religiosa, e num dia eram deuses, noutros eram seres humanos. Como acontece entre nós. As missas, os terços, as orações, são as vigas a que se amarram os nossos estudantes, destinados a ser um povo ignorante do saber abstrato e da lógica do conhecimento – poucas pessoas se prestam para explicar, como faz a minha colega de escrita, minha antiga aluna, Ana Paula Silva, que trata deste texto.
O título do meu livro não foi uma casualidade. O insucesso escolar é a dívida dos nossos governantes, que se interessam mais pelas finanças, pela economia, por colocar a República no buraco sem fundo dos compromissos financeiros, de que nem em 40 anos nos vamos livrar.
Hoje em dia, pegar num livro não interessa. O que importa, para um país sem Atena, é a indústria, a concorrência, colocar as crianças no mercado da produção. O que Crato e o seu chefe ignoram é que sem saber ciência, o trabalho produtivo aprofunda o buraco financeiro, por organizar apenas um vasto número de proletários nas fileiras operárias.
Não era assim com Atena. Mas o que sabem os governantes da deusa do saber, da perfeição e da inteligência? Para os interessados nas finanças, nem Fátima existe, apenas a organização de exércitos de analfabetos, adultos e pequenos, para fabricar mercadorias que possam ser vendidas nos mercados internacionais; vendas que, para esses exércitos, resultam em mais impostos e redução de orçamentos para a saúde, a assistência social, o gás, a água, a eletricidade...
Atena não teria cabimento num governo ignorante. Fátima sim, por formar parte do não saber.

Raúl Iturra


  
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