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Decantações de uma primavera sem andorinhas

"O bem do homem consiste em fazer a alma esforçar-se no caminho da excelência toda a sua vida, pois como uma andorinha ou um belo dia não fazem a primavera, também não é um dia ou um curto lapso de tempo que faz a felicidade de um homem.” [Mia Couto]

Numa manhã ainda da primavera, mas com o céu plúmbeo cobrindo o sítio que até podia representar a pátria, se considerado, como disse Agostinho da Silva, o local de nascimento, é possível, com algum esforço imaginativo, dizer como o Alberto Caeiro que “da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo.”
Mas, sem o recurso a boas memórias, o visionamento será fatalmente o de um céu há anos não percorrido por andorinhas e um espaço já não percorrido por “pastores de rebanhos”, depois de tomado pela invasão do imobiliário a que só resiste uma bouça de carvalhos e eucaliptos, um velho sobreiro que talvez morra de pé e em cuja crosta se acoita ainda um pequeno enxame de abelhas que têm de procurar longe o pólen que sustenta a sua prole.
É então que, sobrenadando o mar de betão e asfalto que condiciona a nossa visão, vemos desenhada na opacidade da paisagem a figura do escritor Mia Couto a escrever, provavelmente em Moçambique, sua pátria, para a revista ÁFRICA 21, do passado mês de março: “Uma arrogância antropocêntrica sedimentou em nós a impressão que apenas os seres humanos são inteligentes e inventores. (...) O nosso planeta ficaria muito bem sem nós. Ficaria melhor, com certeza. Mas ficaria realmente mal se, por exemplo, lhe faltassem as abelhas. E se faltassem outras infinitas pequenas espécies que nós, na nossa arrogância, achamos de ‘inferiores’. E eu fico feliz por saber que a importância da minha existência consiste no modo como me deixo abraçar por essa rede de parentes tão diversos de mim.”
E noutro passo do mesmo artigo, significativamente intitulado O mais de mim mora nos outros, a “moral” da lição dada numa aula da Universidade de Maputo: “Outra lição consiste em saber que a evolução natural resulta não tanto da luta dos mais fortes contra os mais fracos, mas do modo como os seres vivos são capazes de criar alianças de solidariedade.”
Mia Couto, que também é biólogo, e no exercício da sua formação académica conheceu a natureza selvagem, provavelmente escolheu as abelhas por serem produtoras do mel – alimento vital dos bochimanes – sem estarem sujeitas a práticas violentas de exploração ou disputa de território inspiradoras de uma luta de forças só dirimível com alianças de solidariedade ou constrangimentos. Porque as abelhas, como as andorinhas, só têm como inimigo aquele com quem não é possível negociar ou fazer consensos – o predador, esse, que destrói por mero instinto de destruição, não precisando de ter causa ou necessidade.
O nosso surpreendente biólogo poderia ter falado no bicho-homem, ou nos leões, ou nos elefantes, ou nos lobos (mas não era preciso...), para exemplificar como, pelos seus instintos, podem ser iguais ou diferentes. Iguais na defesa de um território e na caça de subsistência. Mas quanto ao homem, ele teria de regressar às lições dos mais antigos pensadores e filósofos, que viajaram pelo mundo, como Aristóteles, para, pesquisando sobre a origem dos costumes certos e errados, do bem e do mal (em nome do que se escravizavam ou destruíam pessoas e povos), verificar que “as emoções acumuladas em nós pelo recalcamento das restrições sociais podem transformar-se subitamente em actos anti-sociais e destruidores”. Donde, como que preventivamente, deixava um ditame: “O bem do homem consiste em fazer a alma esforçar-se no caminho da excelência toda a sua vida, pois como uma andorinha ou um belo dia não fazem a Primavera, também não é um dia ou um curto lapso de tempo que faz a felicidade de um homem.”
Hoje, seria esta a mensagem que o fundador do Liceu, na Atenas de há mais de dois mil anos, dirigiria convictamente aos seus jovens formandos, expulsos do sítio natal pelo Predador, sem a certeza de poderem regressar ao ninho, como as andorinhas noutra primavera. Ou, metaforicamente, asseveraria como Che Guevara: “Os poderosos podem matar uma, duas ou três rosas, mas jamais conseguirão deter a Primavera inteira.”

Leonel Cosme


  
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