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O recreio silencioso

O que vi foi muitos alunos na arquibancada e só dois brincando com uma bola na quadra. Os que estavam sentados pareciam completamente absortos, agarrados aos seus telefones celulares. Estavam jogando ou mandando mensagens. Como não podiam fazer isso nas salas de aula, costumavam passar o recreio assim.

Como pesquiso as propostas de apropriação educacional das tecnologias da informação e da comunicação (TIC) nas políticas e nas práticas concretas desenvolvidas nas escolas, lá fui eu ter um encontro com uma professora que se dispôs a falar a respeito. Como as vozes dos professores parecem cada vez mais ausentes nas abordagens da temática, estando as políticas frequentemente voltadas para uma espécie de discurso da falta (o que falta aos professores), era uma oportunidade significativa.
A escola não correspondia ao núcleo das pesquisas que faço, já que era privada e frequentada por alunos de classe média alta. Entretanto, era um espaço importante para pensar as TIC em outro contexto. A proposta pedagógica não era exatamente experimental. Era marcada pela preocupação em “preservar o que havia de bom no ensino tradicional”.
Nos contatos telefônicos, ficaram evidentes as dificuldades de agenda. A saída foi marcar o encontro na hora do recreio, ainda que com as limitações impostas pela situação. Não apenas eu estaria ocupando o intervalo da minha interlocutora, mas restrita a um tempo curto. Na impossibilidade de escolher as condições em que realizaria a entrevista, fui para lá torcendo para que a sala dos professores ficasse bem longe do pátio, sem muita interferência dos ruídos que os alunos produzem no recreio.
Chegando um pouco antes do horário determinado, tive a oportunidade de passar por algumas salas de aula das turmas de 5º ano, todos com 10 anos. Pelas janelas de vidro, pude ver os alunos participando de atividades individuais e em grupos. A maioria parecia entusiasmada. Ao final do corredor, avistei a sala dos professores, contígua à passagem para o pátio.
Um sinal tocou e os alunos saíram correndo em algazarra. Alguns quase me atropelaram. Em seguida, veio a professora. Ofereceu café e me convidou a sentar no canto da janela que dava para o pátio, para que pudéssemos “conversar mais à vontade”. Outros professores chegaram e se puseram em torno da mesa. Não posso dizer que conversassem alto, mas a sala não era tão grande e alguma interferência seria mesmo inevitável.
Pela janela, quase nenhum ruído. Enquanto a professora me falava da facilidade de acesso aos mais variados objetos técnicos e das reuniões pedagógicas para compartilhar práticas e trocar impressões a respeito, desconfiei de que houvesse algo errado no pátio. O silêncio foi me incomodando tanto que não resisti e perguntei o que havia ali do lado de fora. Quando ela disse que era o ginásio poliesportivo, me levantei para olhar. O que vi foi muitos alunos na arquibancada e só dois brincando com uma bola na quadra. Os que estavam sentados pareciam completamente absortos, agarrados aos seus telefones celulares. Estavam jogando ou mandando mensagens, disse ela. Prosseguiu esclarecendo que, como não poderiam fazer isso nas salas de aula, costumavam passar o recreio assim.
Comentei que, tendo acabado de compartilhar experiências em sala de aula, seria de se esperar que eles conversassem a respeito, que combinassem outros programas com os colegas, etc. A professora me disse que os papos entre eles poderiam estar acontecendo sim... Só então me dei conta de que poderiam estar teclando uns com/para os outros em lugar de conversar.
Impossível não me lembrar dos trabalhos de Zuin [António A. S., Educação a distância ou educação distante?] acerca do fetiche tecnológico, balizado na supremacia da comunicação secundária sobre a primária.
Olhando mais um pouco, lembrei-me de uma imagem que havia circulado no Facebook há algum tempo, comparando o recreio dos anos 80 ao dos dias atuais. Estava ali, bem à minha frente, um recreio silencioso. Conversei um pouco mais com a professora e fui embora, levando comigo aquele silêncio fora de lugar.

Raquel Goulart Barreto


  
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